Rito de passagem linguístico

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A mentira, tantas vezes repetida, vira verdade. A versão se torna fato. E a gente acaba acreditando nela. Políticos, artistas, pessoas poderosas são eternas vítimas. Atribuem-lhes declarações, casamentos, aventuras. As histórias encontram eco em jornais, revistas e tevês. Ganham comentários em colunas. Suscitam entrevistas. Com um pouco de sorte, sentam-se no sofá do Jô Soares. 
 
Ninguém escapa do diz que disse. Nem a língua. Certos usos e expressões adquiriram fama de erradas. É o caso de voltar atrás, não… nenhum, taxar. Foge-se delas como senadores de jornalistas. Quem as emprega candidata-se a críticas e sorrisos desdenhosos. Que injustiça! 
 
É hora da verdade. Na Páscoa, eis o convite. Filhote dos hebreus, a palavra quer dizer passagem. Os pastores nômades comemoravam a primavera. Cantavam e dançavam pela despedida do inverno. Na nova estação, a neve se ia. Os campos se cobriam de pastagens. Os alimentos abundavam. 
 
Mais tarde, os judeus começaram a festejar a Páscoa. Lembram a saída do povo de Israel do Egito. Era a passagem da escravidão para a liberdade. Em 325, foi a vez dos cristãos. Eles exaltam a ressurreição de Cristo. Em outras palavras: a passagem da morte para a vida. Agora, nós. Chegou a ocasião de desmascarar as falsas verdades. É o rito linguístico de passagem. Abram-lhe alas. 
 
 
Falsas verdades 
 
1.Voltar atrás. ‘‘É pleonasmo’’, bradam os repetidores de versões. E explicam: ‘‘Voltar só pode ser atrás. Como voltar pra frente?’’ 
 
A lógica parece perfeita. Mas há um senão. O verbo voltar só adquire o significado de retroceder se estiver acompanhado do atrás. É diferente do subir pra cima e descer pra baixo. Subir é sempre pra cima. Descer pra baixo. Mas voltar nem sempre é retroceder. 
 
2.Taxar x tachar. Essa é velha como o rascunho da Bíblia. Desde que o mundo é mundo, repete-se que taxar significa tributar. É meia verdade. A acepção do verbinho vai além. Atrevido, ele avança no território do tachar. Aí, quer dizer avaliar, julgar, qualificar: Taxou a apresentação de perfeita. Taxou-o de ignorante. Taxou o assessor de corrupto. 
 
Duvida, criatura sem fé? Banque o São Tomé. Consulte o dicionário. Depois, respire fundo. Você sabe que três coisas não podem falhar. Uma delas: luz na sala de cirurgia. Outra: o amado no encontro amoroso. A última: a correção do pai de todos nós. 
 
3. Não … nenhum. Os inimigos da duplinha apresentam suas razões. Dizem que as duas negativas são redundância. Com agravante: junto, o casal deixa de ser negação. Vira afirmação. 
 
Falsa verdade. O parzinho é filho legítimo da linguinha nossa de todos os dias. Um dos empregos do nenhum exige a companhia da negativa anterior. Veja: Não há nenhum projeto concluído na área social. Não houve nenhum atentado durante a semana santa.
Não vi filme nenhum. Fez as gravações sem que nenhum entrevistado o tenha visto. 
 
Quem não gosta da estrutura casada tem saídas. Uma delas: trocar o nenhum pelo algum. Aí, se livra das duas negativas: Não existe projeto algum concluído na área social. Não houve atentado algum durante a semana santa. Não vi filme algum. Fez as gravações sem que entrevistado algum o tenha visto. 
 
Conclusão: a língua é um conjunto de possibilidades. A gente pode nadar de braçadas. Basta uma dose de coragem. E ousadia.