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          Burro com pele de leão   Um burro muito simpático vivia na floresta. A bicharada gostava muito dele. Adorava lhe tocar o pelo, montar no lombo amigo, acariciar as orelhas um tanto estranhas. Certo dia, o quadrúpede achou uma pele de leão. Não teve dúvidas. Vestiu-a. E passou as assustar os animais do pedaço. Coelhos, ratos, veados, porcos-espinhos tremiam de medo quando viam a fera. Aí, não dava outra. Fugiam. Feliz com a nova aparência, o farsante foi dar uma voltinha. Encontrou um lenhador. No início, o homem levou um baita susto. Depois, viu as duas orelhas esquisitas debaixo do corpo de leão. Resultado: ficou com a pele do rei da floresta e ainda deu belas palmadas no fingidor por causa do susto que o mentiroso lhe pregou. Reparou? O mundo está cheinho de gente que quer passar pelo que não é. A língua também. Certas palavras se escrevem iguaizinhas a outras. Mas pertencem a classe gramatical diferente e têm significados diferentes. Como evitar a confusão? A criatividade correu solta. Inventa daqui, palpita dali, eureca! Decidiram pelo acento diferencial. Assim, ele pára, do verbo parar, teria o agudo para distingui-lo da preposição para (vou para São Paulo). Eram poucos vocábulos. Minoria, todos sabem, não tem força. A reforma ortográfica veio e passou a tesoura em grampos e chapéus cuja função era distinguir palavras homógrafas – as que se escrevem do mesmo jeitinho, mas não têm parentesco nem distante. De agora em diante, polo, pera, pelo, pela, para se grafam sem distinção. Assim: Vou ao Polo Norte jogar partida de polo. O ônibus que vai para o Rio para aqui. O burro com pele de leão arrepiou o pelo dos bichos que passeavam pelo caminho do asno. Atenção, muita atenção. Dois diferenciais permaneceram pra contar a história. Um: pôde, passado do verbo poder. Ele não quer confusão com pode, presente. O outro: pôr. O pequeno escapou porque é monossílabo. A reforma só atingiu as paroxítonas.     A cerca cerca confusões acerca da cerca     Um morcego caiu na toca de uma doninha que detestava ratos. Quando viu o intruso, ela disse: — Seu rato atrevido, agora você vai ver o que é bom. — Rato eu? Olhe as minhas asas. Sou um pássaro. O morcego escapou. Mas caiu na toca de uma doninha que odiava pássaros. Ela advertiu: — Cuidado comigo, seu pássaro metido! — Pássaro eu? Não tenho penas. Sou um rato. De novo, salvou a pele.   Ser flexível é pra lá de bom. A gente se adapta com facilidade e experimenta coisas novas. Há palavras que sabem disso. Cerca é um exemplo. Com a mesma cara deslavada, pode ser verbo, substantivo ou advérbio. E, com uma letra a mais, vira preposição. Para saber qual é a dela, só há uma saída: prestar atenção à frase em que a camaleoa aparece.   O verbo não dá trabalho. Cerca é a terceira pessoa do singular do presente do indicativo de cercar (eu cerco, tu cercas, ele cerca): Paulo cerca o sítio com arame farpado.   O rolo se arma com as outras acepções. A causa da confusão é a crase. Quando usá-la? Como substantivo, cerca recebe tratamento igual ao dos irmãozinhos dele. Aceita o artigo (a cerca). Por isso pode vir antecedido de crase: Dirigiu-se à cerca do vizinho. Foi à cerca da casa do irmão para medir o terreno.   Na dúvida, aplique o velho truque. Substitua a palavra feminina (no caso, cerca) por uma masculina (não precisa ser sinônima). Se na troca aparecer ao, não duvide. Ponha crase no a. Veja a aplicação da mágica nas frases anteriores: Dirigiu-se ao terreno do vizinho. Foi ao jardim do irmão para medir o terreno.   Quando advérbio, cerca significa aproximadamente. Aí, nada de crase. Por quê? Advérbio não se usa com artigo: Daqui a cerca de (aproximadamente) duas horas ele vai chegar. Maria saiu há cerca de (aproximadamente) 10 minutos.    Ops! E o acerca? É moleza que só. Quer dizer sobre, a respeito: Essa superdica cerca as dificuldades acerca de questão que dá nó nos miolos há cerca de mil anos. Com a cerca, a alternativa é uma só – acertar ou acertar.   Latim, pra que te quero?   Expulsaram o latim da escola há meio século. Não adiantou. Teimosa, a linguinha bate à nossa porta sem cerimônia. Na televisão, o ministro diz que é demissível ad nutum. O jornal anuncia que o presidente recebeu o título de doutor honoris causa. O advogado afirma que vai entrar com pedido de habeas corpus em favor do cliente.   Mais: a placa do restaurante ostenta o nome Carpe Diem. O professor pede: “Escreva assim, ipsis literis”. O repórter considera sui generis a reação do candidato. O diplomata foi tratado como persona non grata. Dura lex, sed lex, consola o juiz.   Criaturas tão íntimas merecem tratamento respeitoso. A reverência impõe duas condições. Uma: grafá-las como manda a norma culta. A outra: dominar-lhes o significado. Vamos lá?   Ad nutum quer dizer à vontade. O empregado sem estabilidade pode ser demitido segundo o humor do patrão — a qualquer momento.   Honoris causa significa pela honra. Para ostentar o título de doutor, a maioria dos mortais tem de ralar. Mas pessoas ilustres podem chegar lá sem exame. Tornam-se doutores honoris causa.   Habeas corpus é o nome da lei inglesa que garante a liberdade individual. Em português: que tenhas o corpo livre para te apresentares ao tribunal.   Carpe Diem dá o recado: aproveita o dia de hoje. A vida é curta; a morte, certa.   Ipsis literis tem a acepção de textualmente — sem tirar nem pôr.   Sui generis: ímpar, sem igual.   Persona non grata: usada em linguagem diplomática para dizer que a pessoa não é bem-aceita por um governo estrangeiro. Pessoa que não é bem-vinda.   Dura lex sed lex? Está na cara, não? É isso mesmo. A lei é dura, mas é lei.   Reparou? As expressões latinas não têm acento nem hífen. Se aparecer um ou outro, elas perdem a originalidade. Entram, então, na vala comum do português nosso de todos os dias. Compare: via crucis e via-crúcis.     Ia ao encontro do pai, mas foi de encontro à árvore   De encontro? Ao encontro? Cuidado! As duas expressões se parecem, mas não se confundem. Uma é o contrário da outra. Trocar as bolas só traz prejuízo. Exemplos não faltam. Na campanha para a reeleição de Fernando Henrique, o programa sobre os avanços da educação foi o ponto alto. Depois de mostrar escolas que fazem inveja à Suécia e à Dinamarca, o ministro disse: “A educação vai de encontro às expectativas da sociedade”. Dizem que FHC não perdeu a eleição naquele momento porque era sábado. Os eleitores estavam com os sentidos na caipirinha e na feijoada.   

Mais um exemplo? Você manda. O amado chega para a amada. Voz embargada de paixão, sussurra-lhe ao ouvido: “Você veio de encontro aos meus sonhos”. Dita a insânia, só lhe restam duas esperanças. Uma: que a bela seja surda. A outra: que se faça de surda. Afinal, o coração tem razões que a própria razão desconhece. Mas é bom não facilitar. A psicologia amorosa avança dia após dia. Última descoberta: o amor é cego, mas não é surdo. Olho vivo.

De encontro a significa contra, no sentido contrário, em contradição: O carro foi de encontro à árvore. A reforma da Previdência vai de encontro aos interesses dos funcionários públicos. Dos inativos, então, nem se fala. A queda do dólar vai de encontro às expectativas dos exportadores.

Ao encontro de joga em outro time. Quer dizer em favor de, na direção de: O pai caminhou ao encontro do filho. A iniciativa do governo vai ao encontro da necessidade dos sem-teto. A redução no preço da gasolina viria ao encontro do bolso dos consumidores.

Moral da história: parecido não é igual. Mas confunde.     Em vez de pode ser ao invés de   Maria concluiu o curso de direito. Recebeu o canudo e partiu pra luta. Teve sorte. Nos classificados, uma grande empresa recrutava advogados. Ela mandou o currículo. Poucos dias depois, recebeu o convite para entrevista.   Elegante, maquiagem discreta e cabeça cheia de idéias, lá foi ela, feliz da vida. No bate-papo com o examinador, foi curta e grossa:   – Ao invés de salário alto, luto por boas condições de trabalho e aperfeiçoamento profissional.   Cala-te, boca. Dizem que só 12 pessoas sabem o significado de ao invés de. Uma delas é o examinador. Aí, não dá outra. Adeus, oportunidade! Adeus, sonhos longamente acalentados! Adeus, adeus, adeus!   Como evitar a esparrela? Só há um caminho — entender as manhas de duas locuções. Uma: ao invés de. A outra: em vez de. Embora parecidas, elas são ilustres estranhas. A semelhança funciona como armadilha que pega os desavisados pelo pé. Pra não cair na cilada, guarde isto:   Ao invés de significa ao contrário de. É contrário mesmo, oposição: Saiu ao invés de ficar em casa. Comeu ao invés de jejuar. Há religiões que pregam a morte ao invés de pregar a vida.   Nas demais acepções,  não duvide. Use em vez de. As três letrinhas querem dizer em lugar de, em substituição a: Comeu frango em vez de peixe. Em vez de ir ao teatro, foi ao cinema. Convidou Paula em vez de Célia.   Eis o recado que Maria quis dar.   — Em vez de salário alto, luto por boas condições de trabalho e aperfeiçoamento profissional.   Vamos combinar? Salário alto não é o contrário de boas condições de trabalho e aperfeiçoamento profissional. Concorda?   Dica pra lá de útil:: deixe o ao invés de pra lá. A locuçãozinha em vez de o substitui com galhardia. Ela vale por dois: Comeu em vez de jejuar. Em vez da carta, o carteiro entregou o pacote. Bobeou.