O amor e a língua

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    Chora, pé de moleque. Cai, tomara que caia. Geme, dor de cotovelo. Vocês pagam o preço da efemeridade da língua. Há pouco se sustentavam em poderosos hifens. Agora estão soltos. A reforma ortográfica lhes cassou o traço de união. Inspirou-se na definição de Vinicius. “O amor”, escreveu o poetinha, “é infinito enquanto dura.” Encontrou reforço na analogia do Millôr: “Eterno no amor tem o mesmo sentido que permanente no cabelo”.   Assim, com a certeza de que tudo passa, o hífen também passou. Deu adeus aos compostos por justaposição com o termo de ligação. São em geral três palavras que, soltas, nada têm a ver uma com as outras. Mas, juntas, formam um terceiro vocábulo. É o caso de pé de moleque. Pé designa parte do corpo. Moleque, menino sapeca. A preposição de os junta. O trio dá nome ao doce que não pode faltar nas festas juninas.     Exemplos de criaturas desamparadas não faltam. Eis alguns: mão de obra, dia a dia, dor de cotovelo, folha de flandres, faz de conta, quarto e sala, lua de mel.     Ops! Cuidado com a precipitação. O adeus não atinge todas as palavras assim compostas. As que designam bicho ou planta conservam o tracinho. Mantêm-se como dantes no quartel de Abrantes cana-de-açúcar, ipê-do-cerrado, joão-de-barro, bem-te-vi, bem-me-quer, porco-da-índia, canário-da-terra. E por aí vai.   Por falar em adeus, vale lembrar. Tão só, tão somente e à toa se grafavam coladinhas. Agora estão livres e soltas. Sem lenço nem documento, frequentam os textos sem dar nó nos miolos dos falantes. É bom. A reforma, afinal, não se inspirou no Chacrinha. O velho guerreiro dizia que não estava no palco pra explicar, mas pra complicar. No caso, a mudança descomplicou. Viva!