Fez os livros sumir? Sumirem? É o calo do infinitivo flexionado

Publicado em português

A capa da revista Época causou alvoroço. Ei-la: “A outra pílula azul — o novo medicamento que está fazendo os gays abandonar a segurança da camisinha”. Os leitores duvidaram dos próprios olhos. O xis da questão: gays é o sujeito de abandonar. É substantivo plural. O verbo não deve concordar com ele?

Dose dupla

Os zelosos brasileiros estavam diante de uma das mais cabeludas complicações da língua de Camões, Pessoa e Machado. Trata-se do emprego do infinitivo flexionado. O português é uma língua única. Tem dois infinitivos. Um: impessoal. O outro: pessoal. 

1. O impessoal é o nome do verbo (cantar, vender, partir, pôr). Não tem sujeito e, por isso, não se flexiona.

2. O pessoal tem sujeito e concorda com ele: para eu viajar, tu viajares, ele viajar, nós viajarmos, vós viajardes, eles viajarem.

A regra

Quando flexionar o infinitivo? Difícil responder. Os gramáticos não se entendem. Dizem que é questão de eufonia e clareza. Em outras palavras: a frase precisa soar bem e ser clara.

Rigorosamente, só é obrigatória a flexão quando o infinitivo tem sujeito próprio, diferente do da oração principalEsta é a chance / de os novos ministros mostrarem serviço. (O sujeito da 1ª oração é esta; da 2ª, ministros.)

Além do certo e do errado

Observe o exemplo:

Saí mais cedo / para irmos ao cinema.

Se o infinitivo não estivesse flexionado (saí mais cedo para ir ao cinema), a frase estaria correta, mas trairia a verdade. Afinal, quem vai ao cinema não sou eu. Somos nós.

*

Saímos mais cedo / para ir ao cinema.

Certo? Certo. Quem saiu mais cedo? Nós. Quem vai ao teatro? Nós. (Quando o sujeito da segunda oração não está expresso, significa que é o mesmo da primeira.)

Superdica

Se o sujeito da oração principal e o da subordinada forem os mesmos, não precisa flexionar o infinitivo: Saímos (nós) mais cedo para ir (nós) ao cinema.

Se flexionar, peca-se contra a concordância? Não. A gente reforça o sujeito: Saímos mais cedo para irmos ao cinema.

Tanto faz

Voltemos à capa: “A outra pílula azul — o novo medicamento que está fazendo os gays abandonar a segurança da camisinha”.

O sujeito de abandonar é gays. A regra manda flexionar o infinitivo quando ele tiver oração diferente do da oração principal. A Época errou? Não.

Nem todos são iguais perante as regras. Alguns são mais iguais. No infinitivo, os privilegiados são os verbos mandar, fazer, deixar, ver e ouvir. Com eles, a flexão é facultativa. Assim, podemos dizer sem medo de errar:

Vi os dois sair (ou saírem) da sala.

Ouvi os cães latir (ou latirem).

Deixai vir (ou virem) a mim as criancinhas.

Fiz os alunos estudar (ou estudarem).

O pai manda os filhos preparar (ou prepararem) os trabalhos.

Percebeu? É o caso da capa: A outra pílula azul — o novo medicamento que está fazendo os gays abandonar (ou abandonarem) a segurança da camisinha.

Sem abuso

Cuidado. A exceção tem limite apertado. Se o sujeito for um pronome átono, acabou a farra do infinitivo. Ele só pode ficar no singular: Vi-os deixar a sala mais cedo. Ouvi-as chegar. Deixei-os sair. Pressão sindical fê-los recuar. O novo medicamento os está fazendo abandonar a segurança da camisinha.
Resumo da história

Flexão obrigatória:

1. Com sujeitos diferentes (exceção: verbos mandar, fazer, deixar, ver e ouvir).

2. Com pronome átono como sujeito.

Flexão facultativa:

Nos demais casos. Olho na eufonia e clareza.

Ufa!