Nas Entrelinhas – E se Trump fosse o presidente dos EUA?

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Defender a democracia como valor universal é um escudo antigolpista. Tanto no plano interno quanto na política internacional

O ex-chanceler do México Jorge Castañeda disse à CNN Internacional, no sábado, que o golpe do ex-presidente Jair Bolsonaro para continuar no poder não ocorreu em 8 de janeiro porque os Estados Unidos atuaram para “persuadir” as Forças Armadas brasileiras a não aderir aos atos golpistas. Seu comentário foi feito num contexto em que criticou a atuação do presidente Joe Biden em favor da democracia na América Latina. Cientista político, economista e diplomata, Castañeda foi secretário das Relações Exteriores do México de 2000 a 2003, durante a presidência de Vicente Fox. Escreveu livros sobre os movimentos de esquerda na América Latina, entre os quais uma biografia de Che Guevara.

“Com a exceção do Brasil, os Estados Unidos não foram uma fonte de força para a democracia na América Latina, em um momento que ela estava enfraquecida por todos esses eventos que nós vínhamos falando. No caso do Brasil, sim, os Estados Unidos convenceram, persuadiram as Forças Armadas brasileiras a não perseguir um golpe militar contra o presidente Lula, que foi eleito no final do último ano e tomou posse em primeiro de janeiro, e foi quase deposto em um golpe com grande participação militar em 8 de janeiro”, disse na entrevista, divulgada aqui no Brasil pelo site Congresso em Foco.

Há um consenso entre os principais analistas políticos brasileiros de que a possibilidade de êxito de um golpe militar no Brasil era improvável por falta de apoio internacional, sobretudo após a eleição de Biden nos EUA. Mas se sabe muito pouco sobre o que, de fato, aconteceu entre o Departamento de Estado e os militares brasileiros. Essa avaliação política decorre das manifestações públicas do presidente norte-americano em relação ao processo eleitoral e à vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que foi recebido por Biden na Casa Branca antes de tomar posse.

O envolvimento de militares com as articulações golpistas já era bastante conhecido, inclusive as simpatias dos generais Walter Braga Netto, candidato a vice-presidente, Luís Ramos (Secretaria-geral da Presidência) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), que formavam o estado-maior do governo passado. Também se sabia da torcida do general e ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira e do almirante e ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos pela reeleição de Bolsonaro.

Todos são oficiais de quatro estrelas e fazem parte do time que estava disposto a não aceitar o resultado das eleições, se recebessem ordens de Bolsonaro para impedir a posse de Lula.

No decorrer dos acontecimentos de 8 de janeiro, também ficou evidente que o então comandante do Exército, general Júlio Cezar de Arruda, não atuou como deveria para desmobilizar os “patriotas” acampados em frente ao QG da Força, mesmo tendo sido nomeado por Lula. Foi no acampamento que a invasão do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF) foi organizada.

Também se sabe que havia a expectativa de que uma operação de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) fosse decretada por Lula, para entregar o controle de Brasília ao Exército, a pretexto de conter os invasores. O presidente preferiu uma intervenção do Ministério da Justiça.

Defesa da democracia

Agora, a Polícia Federal (PF), o Ministério Público Federal (MPF), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro, na medida em que avançam as investigações, mostram que o envolvimento de oficiais superiores da ativa do Exército e da Polícia Militar de Brasília na conspiração é muito maior. Nesse aspecto, a quebra do sigilo fiscal, telefônico e digital do general Lourena Cid, pai do ex-ajudante de ordens da Presidência Mauro Cid, pode trazer novas revelações sobre a conspiração.

Vale lembrar que uma das causas da demissão do general Arruda e sua substituição no Comando do Exército foi manter Cid à frente do Batalhão de Operações Especiais do Exército em Goiás, para o qual havia sido nomeado a pedido de Bolsonaro.

No sábado, ao lado do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, Lula teve um encontro com os atuais comandantes da Marinha, Marcos Sampaio Olsen; do Exército, Tomás Paiva; e da Aeronáutica, Marcelo Kanitz Damasceno. Há uma grande tensão entre os militares em razão das investigações em curso, que são inéditas do ponto de vista da relação das Forças Armadas com o poder civil.

Pela primeira vez, será a Justiça comum que punirá os militares envolvidos em malfeitos e conspirações golpistas. Lula tem procurado melhorar a relação com a caserna, prestigiar a cúpula atual das Forças Armadas, legalista, e garantir os investimentos programados para a indústria nacional de defesa.

Não se sabe ainda toda a extensão do envolvimento dos militares da ativa com a conspiração golpista. Bolsonaro teve o apoio da maioria dos oficiais na eleição. Perdeu-a por estreita margem, mas o resultado das urnas foi reconhecido pela maioria do Alto Comando. A tentativa de golpe de 8 de janeiro, que parecia uma trapalhada, foi uma ameaça muito mais grave à democracia.

Diante da entrevista de Castañeda, cabe a pergunta: o que aconteceria se Donald Trump ainda estivesse no poder? Ainda mais porque ele pretende voltar à Casa Branca.

A pergunta também é pertinente porque existe uma subestimação dos riscos que a democracia correu no Brasil. Tanto de parte de setores democráticos que fazem oposição, com o propósito de rearticular desde já uma terceira via, quanto dos setores de esquerda que não compreendem a democracia representativa como um objetivo em si e não um mero instrumento de luta político-ideológica. Defender a democracia como valor universal é um escudo antigolpista. Tanto no plano interno quanto na política internacional.