Beneficiários do INSS correm risco de ficar sem perícia

Publicado em Servidor

Governo quer baratear custo com perícias independentes. Para economizar, a saída encontrada é “o aproveitamento dos peritos médicos federais”, os mesmos que negam direitos no INSS, para uma segunda avaliação. Especialistas consideram a medida “imoral”

Os beneficiários do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que entraram na Justiça contra a União porque tiveram direitos negados e dependem de perícia médica judicial independente para reavaliar se continuam – ou não – de licença por doença ou aposentadoria por invalidez estão prestes a se deparar com mais uma dificuldade a partir de 2020. Um projeto (PL 2.999/2019) de lei que tramita na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) afasta totalmente esse profissional independente e deixa a cargo do perito federal – da mesma carreira que negou o pedido no INSS – a decisão sobre o destino do cidadão que se sentiu lesado.

Isso porque, atualmente, quando o contribuinte da Previdência Social tem algum problema sério que o deixa permanente ou temporariamente incapacitado, a primeira perícia é feita por servidores públicos, agora chamados de peritos médicos federais (antes eram médicos peritos do INSS). Quando o laudo não está de acordo com o que o doente ou o incapaz pensa ou sente, o contribuinte busca o Judiciário. Durante o processo, o magistrado convoca outro especialista na mesma área, de fora do serviço público, para uma segunda opinião. É justamente essa segunda opinião que será prejudicada se o texto passar como foi entregue, em 26 de junho.

Porque o relator do projeto, deputado Eduardo Bismark (PDT-CE), alegando o alto custo das perícias, incluiu um artigo ao PL 2.999 que tira a opção do contribuinte. No texto ele explica que uma única perícia judicial pode chegar, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), a R$ 1.850,00. “Estima-se que em 2019 o montante necessário ao custeio das perícias judiciais alcance o valor de R$ 316 milhões e, em 2020, se nenhuma providência for adotada, ultrapasse R$ 328 milhões”.

Custo

“Nesse sentido, a inclusão do art. 3º ao texto, na forma do substitutivo anexo, permitirá o aproveitamento do corpo de peritos médicos federais (servidores públicos federais) com o objetivo de realização da perícia também na esfera judicial”, destaca o texto apresentado à CCJ, no último dia 26 de junho, que, se aprovado, entrará em vigor em 2020. Bismark diz ainda que a proposta é “factível” diante da alteração da nomenclatura da carreira, “que transferiu a vinculação funcional dos peritos médicos do INSS para o Ministério da Economia, o que lhes garante maior autonomia e independência. ”

De acordo com a advogada Viviane Moura de Sousa, presidente da Comissão de Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/DF), a “situação é, no mínimo, imoral”. “Essa proposta foi muito debatida nessa sexta-feira e, como consequência, foi formado, pela Comissão, um grupo de trabalho para estudar o assunto. Entendemos que se o INSS já negou a perícia, a parte lesada, que é o pobre, vai ficar mais lesada ainda. Além disso, o isolamento da carreira dos peritos federais também já foi criticada pela Conselho Federal de Medicina”, destacou Viviane.

O juiz Guilherme Feliciano, do Departamento de Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP) e ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), destacou que, “de fato, há uma incoerência, quando o perito que realiza a prova judicial pertence ao mesmo corpo que originalmente recusou àquele cidadão o seu direito”. Não é adequado, afirmou, aproveitar os peritos federais, quando a própria União é a ré.

“O segundo ponto diz respeito à própria capacidade do perito. Poderíamos passar todas as avaliações para peritos que já integram o poder público? Acho que não. Porque eles, pela sua própria atribuição, já estão assoberbados. Há cerca de 15 anos, a Justiça do Trabalhou pediu que esses peritos nos auxiliasse. Ficou impossível. Apesar da boa vontade, não davam conta da demanda. Talvez, criar um corpo judicial de peritos, um novo quadro vinculado ao Poder Judiciário, a partir de concurso público, seja uma boa ideia. Aí não haveria peritos da confiança do juízo”, destaca Feliciano.

Prejuízo ao cidadão

Na análise do advogado Diego Cherulli, especialista em direito previdenciário, o que tem por trás desse PL, que vem da equipe econômica, é extinguir a perícia independente, apesar do prejuízo para o cidadão. “É importante destacar que a maioria das perícias que passaram pelo pente-fino do INSS estão judicializadas. Isso causa ainda mais prejuízo para os cofres públicos porque, lá na frente, além da indenização, a União vai ter que bancar aquele direito com juros e correção monetária. É nisso que o governo tem que pensar. Não é adequado que um grupo de nega seja o mesmo que vá avaliar a contestação do que foi negado”, destacou.

Repercussão

No fim da tarde, após o burburinho causado pela inclusão de mais um artigo no PL 2.999, o deputado federal Eduardo Bismark, relator da proposta, contou que vai, na próxima segunda-feira, 1° de julho, protocolar um novo relatório com a mudança desse item. “O objetivo foi redução de custos e teve consenso do Ministério da Economia, dos peritos e do Judiciário. Tenho conversado muito com todas as partes. Por causa da polêmica, vou incluir um parágrafo explicando que a convocação da perícia independente é da deliberação do juiz. Se ele questionar qualquer resultado, pode vetar ou convocar outro especialista. Aí, acho que atendemos a todos: médicos, Justiça e equipe econômica”, contou.

O PL 2.999/2019 já está na pauta da CCJ para votação na próxima terça-feira (2 de julho). “Vou chegar cedo em Brasília na segunda e até as 18 horas vou trocar o parecer”, prometeu Bismark. O especialista em direito previdenciário Washington Barbosa, diretor-acadêmico do Instituto Duc In Altum (DIA), não vê problema no fato de o perito federal eventualmente fiscalizar o trabalho de um colega. “O especialista tem responsabilidade profissional e em caso de fraude responde processo ético, civil e penal. Nenhum laudo é irrefutável e todos merecem contraditório. Acho que dá mais segurança que o processo, no todo, seja tratado por um concursado do que por uma perícia privada”, justificou.

Francisco Cardoso, presidente da Associação Nacional dos Médicos Peritos da Previdência Social (ANMP), ficou indignado com as declarações da representante da OAB/DF e do advogado Diego Cherulli. “Nós temos fé pública. Somos isentos e não dependentes de gestor ou de governo. Podemos sim emitir laudo mesmo quando a União é parte do processo. Trabalhamos para o Estado e não precisamos da amizade de juízes”, afirmou.  Ele falou ainda que, se a “OAB for coerente deveria sair do processo (acompanhamento do PL 2.999)”.

Em resposta ao presidente da AMNP, a advogada Viviane de Sousa reforçou que “a comissão de direito previdenciário e seguridade social da OAB DF formou núcleo de estudos para analisar os impactos sociais e financeiros do projeto, mas de antemão, vê-se o extermínio dos benefícios por incapacidade, motivada por uma luta classista por aumento salarial”.

.

Por meio de nota, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) lembrou que dados do TCU, que resultaram em acórdão do órgão, demonstram que os custos médios periciais na Justiça Estadual chegam a ser 50% maiores do que na Justiça Federal. No Tribunal do Mato Grosso do Sul, em que a perícia judicial é mais cara, o custo médio chegou, em 2016, próximo ao máximo estipulado pelo Conselho de Justiça Federal (R$ 720). “Os dados ainda apontam que, embora a Justiça Federal possua 85% dos processos previdenciários (acidentários ou não), ela é responsável por apenas 17% do total gasto com perícias, enquanto a Justiça Estadual (apenas nas ações acidentárias e delegadas) é de 27%”, destaca a Ajufe.