Até a próxima segunda-feira (26), o Salão Negro do Ministério da Justiça (MJ) recebe a exposição Justiça começa na infância: da Constituição de 88 ao Marco Legal da Primeira Infância. A série de painéis com fotografias e informações trata da garantia de direitos de crianças de 0 a 6 anos e tem sido tema de discussões durante visitas de turmas escolares. Ambos moradores de São Sebastião, Kennerd Charlles Morais, 10 anos, e Renata Kemilly Alves da Silva, 10, estavam entre as crianças atendidas pelo Projeto Vida Padre Gailhac que visitaram a exposição. No MJ, além de observar a mostra, a turma participou de uma roda de conversa, lanchou, desenhou e até conheceu o próprio ministro da Justiça, Torquato Jardim.
“Eu aprendi muito sobre os direitos das crianças, especialmente na primeira infância. Todo mundo, desde quando nasce até os 6 anos e depois, deve ser respeitado”, diz Kennerd. Renata refletiu sobre a diversidade. “Se todas as pessoas fossem iguais, não teria graça. Com as diferenças, todo mundo tem sua beleza, sua cultura e deve ser respeitado e valorizado pelo que é.” Ivania Ghesti trabalhou nos bastidores da elaboração do Marco Legal da Primeira Infância (legislação em que o Brasil é vanguarda mundial) e, como assessora especial do Ministério da Justiça, tem atuado para que o tema seja valorizado no órgão. “A primeira infância é a melhor estratégia para a melhoria da vida de todas as pessoas. Às vezes, pensam que se trata só da criança, mas a partir da criança, você cuida de toda a sociedade”, afirma.
“Tudo isso com menos custos e evitando muito sofrimento, pois você potencializa a humanidade. Está entre os investimentos que mais valem a pena, o que até o ganhador do Nobel de economia demonstrou matematicamente”, completa, referindo-se a James Heckman, que ganhou o prêmio em 2000. Ela avalia que o Brasil está em dívida com a primeira infância, pois a regra da prioridade absoluta para essa faixa etária é mencionada há 30 anos, mas ainda não é suficientemente compreendida e colocada em prática. “A exposição resgata o que está nas leis, mas que ainda exige mais capacitação e divulgação para se realizar.” No âmbito da Justiça, o próximo passo nesse sentido, que está em fase de organização, é a realização de uma formação nacional para promotores, defensores e profissionais do sistema de Justiça.
Dois primeiros passos foram o seminário Justiça começa na infância: a era dos direitos positivos, realizado no MJ em 18 de setembro e o seminário Relação dos microssistemas jurídicos da infância com o direito internacional, que será sediado no mesmo ministério em dezembro (provavelmente, no dia 13). A programação está em construção, mas deve contar com ministros do Poder Executivo e de tribunais superiores, juízes, procuradores, especialistas e outros interessados que se reunirão para fomentar o debate entre órgãos públicos, entidades internacionais e sociedade civil sobre ações relacionadas à justiça e aos direitos humanos para a infância.
É preciso haver integração para cuidar dessa fase
Mais importante do que a mostra sobre primeira infância no Ministério da Justiça em si é o que ela simboliza: a abertura da pasta (responsável, entre outras atividades, por combate à corrupção; defesa da ordem jurídica e econômica; política judiciária e sobre drogas; direitos dos índios e do consumidor) para a proteção integral das crianças pequenas. O que deve envolver todas as instâncias e áreas do estado, como destaca o ministro da Justiça, Torquato Jardim. “A primeira infância precisa ser mais pensada, não só no Ministério da Justiça, mas também em desenvolvimento social, saúde…”, elenca.
“Os estudos modernos da psicologia revelam que a grande formação do ser humano vai de 0 aos 6 anos e mostram que cuidar a partir do terceiro ano de vida já não é a mesma coisa. Daí a importância do Marco Legal da Primeira Infância”, diz, referindo-se à Lei nº 13.257/2016, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância. “Temos que cuidar da criança desde cedo, ainda no ambiente familiar, e da própria família. Não dá para deixar chegar à educação infantil para pensar nisso”, reconhece. O ministro relata que o que a pasta pela qual ele é responsável fez, efetivamente, nos últimos tempos, foi coordenar ações e verbas com a saúde e o desenvolvimento social para atender melhor e proteger essa faixa etária.
Em termos de legislação, o Brasil fez grandes avanços no sentido de priorizar o início da vida (um exemplo é o próprio marco legal do período), no entanto, há muito que se fazer para colocar todos os direitos previstos em prática. Torquato Jardim, que foi professor de direito constitucional da Universidade de Brasília (UnB) por quase 20 anos, ressalta, no entanto que não é um problema exclusivo daqui. “Vaga para creche, por exemplo, falta no mundo inteiro. O país, hoje, com menos verba para alimentação escolar é a Inglaterra, e há crianças passando fome lá porque houve corte nesse orçamento. Isso não é escusa para o Brasil, mas é para mostrar que estamos mergulhados numa grande escala desse tipo de problema”, diz.
Recomendações do ministro que passará o bastão
Entre os desafios clássicos que o Brasil precisa enfrentar para cuidar melhor da primeira infância o ministro destaca as disparidades de distribuição de renda e de educação formal, que dificultam avanços. E o que o MJ pode fazer pela primeira infância a partir de agora? “Faltam menos de 40 dias para eu ir embora. Já conversei com o doutor Sérgio Moro sobre esse tema, que ficou muito interessado em conhecer mais o assunto. O que eu sugiro e acho que podemos fazer melhor aqui é a coordenação em primeiro lugar”, afirma. O juiz Sérgio Moro, indicado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, assumirá a pasta hoje comandada por Jardim, além da segurança pública, já que as duas áreas voltarão a ser tratadas num ministério só, como antes do governo Temer.
“O que fica desta gestão é o princípio de unir os recursos de Justiça, de Desenvolvimento social e de Saúde, como foi feito para recuperação de dependentes químicos. Conseguimos juntar cerca de R$ 120 milhões para cofinanciar cerca de 10 mil vagas em comunidades terapêuticas Brasil afora”, observa. “O que temos de fazer é aplicar isso na primeira infância. Tem muita atuação dispersa e pouca oferta em conjunto. É um trabalho a fazer em conjunto também com os governos locais, do Distrito Federal e das cidades”, defende. O ministro alerta, porém, que apenas arranjar verba não adianta. “Não falta dinheiro público, falta gestão pública. Não é simplesmente transferir o dinheiro. Cuidar de qualquer assunto social (especialmente esse, que é o de maior consequência para as novas gerações do Brasil, que é a primeira infância) é muito mais do que transferir recursos”, assegura.
“Eu fui ministro da Transparência e falo de algo que está documentado. É chocante a corrupção municipal que faz desaparecer dinheiro das crianças, em saúde, educação, alimentação, material escolar.” Torquato Jardim avalia que este é um momento crucial para repensar o que se faz para o público infantil. “Essas crianças que estão aqui vão viver o século 22 e estamos séculos atrasados para formá-las. Ninguém está educando para a segunda metade deste século. 80% das profissões em ativa daqui 20 anos ainda não existem hoje”, diz. O que torna fundamental atualizar não só a educação, mas todas as áreas e serviços que lidam com crianças.
Parcerias público-privadas também são importantes
Entre as turmas infantis que visitaram a exposição no Ministério da Justiça estava uma atendida pelo Projeto Projeto Vida Padre Gailhac, mantido pelo Colégio Sagrado Coração de Maria. Trata-se de uma ação de socialização infantojuvenil que atende crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social de São Sebastião. “É um serviço de convivência e fortalecimento de vínculos no contraturno escolar. Lá, atendemos a demanda da sociedade e também meninos encaminhados pelo Conselho Tutelar, pela saúde, pela educação e pela assistência social”, explica Françoise Brito, assistente social da iniciativa. Ilda Peliz, responsável pela Secretaria de Estado do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos do Distrito Federal (Sedestmidh), destaca que projetos como esse são fundamentais.
Ilda Peliz, secretária de Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos do DF
“O serviço de fortalecimento de vínculos está na nossa atuação, é aplicado nos centros de convivência públicos. É no contato com educadores que crianças, especialmente na primeira infância, conseguem se abrir. O trabalho é com a família, então, por meio disso, é possível identificar situações-problema, como violência, seja física, seja emocional”, afirma. “E, quando você encontra uma instituição como essa (o Colégio Sagrado Coração de Maria), que quer oferecer o serviço, é uma grande oportunidade. Isso ajuda o governo, que pode canalizar energias e recursos para outras atividades. É um trabalho de mãos dadas”, elogia. A secretária, que já foi presidente da Abrace (Associação Brasileira de Assistência às Famílias de Crianças Portadoras de Câncer e Hemopatias), vê em parcerias público-privadas a solução para diversos problemas.
“Infelizmente, há poucos trabalhos conjuntos assim”, lamenta. Ilda avalia que, apesar de já existirem boas ações implementadas, todas as instâncias e esferas do governo precisam ser lembradas e conscientizadas da importância da primeira infância. “Se você foca essa criança desde a gravidez, conscientiza os pais de que é importante conversar e estimular, a diferença é enorme. A mente da criança é muito maleável nessa fase. Depois, pouco se pode fazer”, adverte. “As políticas públicas existem, mas, às vezes, o estado sozinho não consegue aplicar. Então, vamos todos, sociedade, empresas, organizações, dar as mãos. E, em muitos casos, não é preciso de muito, só aproveitar uma estrutura que já existe”, aponta.