Correr na rua pode ser um perigo. Quem vê esse pessoal animado, de calção, tênis e garrafinha d’água na mão, nem imagina as ameaças. E não apenas por causa de maus motoristas, das intempéries e do risco de contusões para quem já passou da idade de fazer esforço olímpico. Os perigos estão à espreita, nas formas menos esperadas.
Meu amigo corria pelo Parque da Cidade já na metade do percurso de 14 quilômetros que ele insiste em cumprir, mesmo já vovô, para manter o corpinho sarado. O esforço era evidente; cenho fechado, sem camisa, suado, ele irrompia pela pista interna do parque com a teimosa disposição que o tira da cama todos os dias antes da aurora.
Ultrapassava outros corredores com facilidade, embora não estivesse ali para apostar corrida; o objetivo é manter a forma física – o que ele completa com sessões diárias de musculação em academia. De vez em quando precisava se desviar de algum ciclista que insiste em usar a mesma pista para pedalar e até patinadores.
Esses percalços fazem com que muitas vezes ele use trilhas, o que aconteceu naquela manhã, quando o parque estava cheio. E foi aí que o inesperado fez a surpresa: no meio do caminho surgiu um animal mais do que selvagem, furioso. O bicho se colocou em posição vertical, abriu a boca e soltou um regougar estranho e tenebroso. Meu amigo parou.
A cena não durou cinco segundos, algo próximo de uma eternidade. A sensação de felicidade que sempre aparece com a injeção de seratonina e endorfina no sangue de quem corre desapareceu; mas ele ainda teve tempo de se lembrar da cena em que um urso imenso atacou Leonardo DiCaprio no filme O Regresso.
Meu amigo é valente, mas nem pensou em se atracar ao bicho; preferiu dar no pé. Dispensou a técnica adquirida em muitos anos de corrida e saiu em desabalada carreira com o animal no encalço, ainda guinchando. Parecia o Usain Bolt e deixou o bicho para trás, quando se permitiu sentar ainda assustado.
“Estamos em Brasília, capital, não é lugar para animais selvagens”, pensava. Foi quando os pensamentos começaram a se ordenar e a forma do bicho foi diminuindo para o tamanho real. Era um regougar, som das raposas, ariranhas e gambás o que ele tinha ouvido; não era um urso, o que ele tinha visto. Era um saruê. Dos grandes, mas um saruê.
O saruê – que na região sul é chamado de gambá-de-orelha-preta – tem hábitos noturnos, é animal solitário e só ataca para se defender; neste caso devia ser uma fêmea, provavelmente defendendo a prole. Quando nervoso, o saruê solta uma espécie de pum dos mais fedorentos, mas que sai de uma glândula.
São comuns os casos de saruê vivendo em casas – eu mesmo tenho um inquilino desses, que expulsou a família de morcegos que vivia sob as telhas e de vez em quando quebra copos e garrafas das prateleiras – mas não são bichos amistosos. Que o diga meu amigo, que agora não sai da pista; prefere o risco de ser atropelado por um ciclista.
Publicado no Correio Braziliense em 26 de março de 2023