Um amigo garante que jamais, em tempo algum, ninguém bebeu cerveja com o gosto de Danilo Gomes. Evidente exagero, porque antes de tudo trata-se de um apreciador do líquido dourado, filho de cereais maltados ou não. O que ninguém discute é que é um connaisseur, além de excelente cronista. Para dirimir dúvidas, abro alas para o mestre. Com vocês, Danilo Gomes, mestre da palavra. E da cerveja.
Cerveja inglesa
Danilo Gomes
No seu livro de aventuras O fantasma de Sandokan, o italiano Emilio Salgari faz uma brincadeira com os ingleses, fleugmáticos ou mais expansivos. Assim entendo a passagem. À pág. 24, o personagem Yañez pede ao seu criado Mutri: “Traze-me cerveja inglesa, Mutri; é a única coisa boa que a Inglaterra sabe fazer”. E a emborcou com gosto de velho marinheiro e pirata.
Na sua notável obra A ira de Deus – O grande terramoto de Lisboa – 1755” (em Portugal é terramoto, no Brasil é terremoto), o inglês Edward Paice, à pág. 42 da 2ª ed. portuguesa, Casa de Letras, Lisboa, 2010, escreve:
“Não existiam clubes, havia poucos entretenimentos do gênero dos que estavam na moda em Londres e, para os que chegavam, vindos de uma cidade com 6.000 cervejarias e 9.000 lojas de bebidas e um consumo médio entre a população – adultos e crianças – de um litro de gim por semana, Lisboa parecia, aos olhos do inglês comum, quase seca”.
Sabe-se que cerveja é uma bebida de tempos mui remotos, como o vinho, que embriagou Noé, segundo as Escrituras. Os antigos romanos dos tempos dos reis, imperadores e cônsules já bebiam cervicia. Recentemente arqueólogos e cientistas da Academia Austríaca de Ciências analisaram grãos de cereais e constataram que a bebida já era produzida na Europa havia mais de 6 mil anos, ainda no período neolítico, ao mesmo tempo em que o produto se desenvolvia na Suméria (onde hoje está o Iraque) e no Egito. Inicialmente, a cerveja pode ter sido usada em procedimentos ritualísticos – dizem os estudiosos da matéria.
A produção da cerveja começou simultaneamente em várias regiões do globo, vale dizer, no Egito, na Suméria, na Itália, na Suíça, na Alemanha e em várias outras regiões.
Gravuras egípcias dos tempos das dinastias faraônicas relatam o contato do povo com uma bebida desconhecida e diferente de tudo que existia. Era a cerveja, que a rapaziada de hoje chama de cerva…
Segundo Kathia Zanatta, sommelière e cofundadora do Instituto da Cerveja, os povos antigos descobriram que era possível usar grãos, cereais e frutas para muitas coisas além da comida. Ela ensina: coletar grãos era uma tarefa de mulheres, que podem ser consideradas as “criadoras” da cerveja. Foi o que aconteceu com a uva. E foram surgindo, quanto à cerveja, aperfeiçoamentos, como fermentação e malteação. O povo bebeu vinho, bebeu cerveja – e gostou. E depois veio a geladeira, veio o chope…
Com todo o respeito aos honrados produtores de cerveja da Grã- Bretanha (God save the Queen!); sou admirador da Rainha Elizabeth II), prefiro as nacionais mais leves da indústria cervejeira tradicional. Ou um bom chope tradicional, como o da Toca do Chope, do Claude Capdeville, na Quituart, no Lago Norte, em Brasília, onde se pode comer um ótimo pastel de angu bem mineiro, com fubá de milho vindo de Viçosa, MG, terra do Claude e sua mulher, Lana. (Aviso aos navegantes, digo, aos patrulheiros sempre de plantão: pelo “comercial”, juro que não estou ganhando um vintém, um tostão furado, nem um chope, nem um pastel de angu, já ouviram?)
No mais, política, gosto, cor, opções sexuais, time de futebol, religião são temas que não se discutem: podem dar briga. Esse negócio de doutrinação política ou religiosa e patrulhamento ideológico só desanda em litígio e confusão. Melhor evitar e mudar de assunto, falar sobre o tempo, a chuva, o calor, o frio, a lavoura, cachorro, árvore, passarinho, viagem a Marte. Melhor beber uma cerveja (inglesa ou não), um chope, lendo um jornal ou proseando com os amigos, numa noite sossegada ou numa animada e ensolarada manhã de sábado ou domingo. Vamos deixar a infindável brigalhada para a guerrilha das redes sociais… Ainda mais neste ano político de 2022.
– Garçom, mais uma caneca de chope, por favor!
Publicado no Correio Braziliense em 10 de abril de 2022