Não é tarefa fácil reconhecer um buda. Pois era sempre essa a impressão quando encontrava Carlinhos 7 Cordas, músico que morreu há exatamente um mês; senão pelos defeitos – que não conheci –, as virtudes gritantes não permitiam dúvidas, expostas pelo olhar plácido e comportamento tolerante de um homem que usava seus violões e seus relógios, bens materiais, para escancarar a perfeição espiritual.
Carlinhos foi um buda bem brasileiro: a iluminação era evidente; havia serenidade, equilíbrio emocional e elevação. Mas todas essas qualidades vinham misturadas com sorriso largo, conversa mansa, olhar matreiro e uma generosidade sem tamanho. E tudo isso se refletia na sua música, enganosamente simples, imensamente bela e que servia de parâmetro e estofo para solistas – estes sim, uns exibidos.
Quando chegou a Brasília, Carlinhos encontrou choro por aqui – Avena, seu Bide, Valcir e muitos outros já tinham trazido as sementes. Mas quase não havia violonistas de sete cordas e certamente nenhum como ele, que encantou Waldir Azevedo logo na primeira audição. “De hoje em diante, você fica do meu lado. O resto fica para lá”, disse o cavaquinhista ao ouvi-lo.
Carlinhos era também bom cantor. Não gostava muito de soltar a voz, mas fez sucesso pelo menos uma vez, quando esteve com Waldir em Tucuruí, Pará, tocando para operários que construíam a barragem. “O público não batia palma, peão não bate palma para músico. Daí o Waldir me pediu e eu cantei umas coisinhas. Aí o pessoal aplaudiu”, contava satisfeito.
Assista Carlinhos – com o Trio Baru – tocando Pedacinho do Céu, de Waldir Azevedo:
Tinha algumas reticências na vida. Não gostava de tocar Flor do Cerrado, uma das músicas que Waldir Azevedo fez para homenagear Brasília, porque foi a última composição do mestre e amigo. “Me dá uma coisa ruim quando eu toco”, dizia.
Gostava de tocar Minhas Mãos, Meu Cavaquinho, que Waldir fez quando se recuperou do transplante do dedo anular, decepado pelo cortador de grama. E lembrava: “Já estavam no hospital quando dona Olinda voltou para casa e viu o gatinho brincando com o dedo. Waldir treinou muito num cavaquinho de cordas de nylon e voltou tocando ainda melhor que antes”.
Carlinhos era assim, preferia falar dos outros. Se comportava como um coadjuvante das histórias e até da música; mas tinha plena consciência de seu valor como músico, de sua relação com o chorinho. Não precisava falar muito sobre isso. “Tive a honra de tocar com essas pessoas”, dizia dos companheiros.
Intuitivo, soube ensinar com generosidade. “O choro tem seus caminhos. Deus me deu isso de graça e sempre sei mais ou menos para onde vai; eu consigo tocar uma música que nunca ouvi. Posso até errar uma, mas na hora de repetir eu vou em cima”, contava.
Nas últimas horas de vida, confessou a Alcione Tomé, companheira de quase toda a vida, que estava vivendo seus piores dias, o que mostrava a fragilidade de um otimista perene, que brincava até com as coisas mais sérias. Certa vez, falando da neuropatia na coluna que dificultava a locomoção concluiu: “ainda vou voltar a jogar bola”.
Nessas horas o silêncio incomoda muito.
Publicado no Correio Braziliense, em 15 de setembro de 2019