A caravana partiu alegre; amigos saíram de Brasília para se juntar a pessoas de outros lugares e seguiram em direção à Rússia. Longas horas em voos e escalas não desanimaram a festiva turma que, pode-se dizer, não está mais na flor da idade, embora muitos prefiram não enxergar as próprias rugas – culpa do espelho, naturalmente.
Antes da viagem, os amigos dos viajantes estranhavam. “Mas ainda faltam muitos meses para a Copa”, era a frase que eles mais ouviam; os mais velhos ressuscitaram uma velha expressão da esquerda para designar o futebol nos tempos de política opressiva e reclamavam da obsessão com o “ópio do povo”.
A turma não queria saber de bola, estava mais interessada em comemorar os cem anos da Revolução Soviética, ver in loco o legado de Lênin, Trotski e Stálin, festejar a vitória do proletariado sobre a realeza, a materialização da pregação de Marx, a origem da esquerda como fato. Tudo isso acabou, mas, sabemos, sonhos não envelhecem – mesmo puídos.
Deixavam um país que havia tirado a esquerda do poder – pelo menos pensavam assim – para ir de encontro ao berço revolucionário e aos antigos ideais. A melancolia deu lugar a uma efusividade juvenil; estavam todos remoçados, ansiosos para respirar o ar soviético. No íntimo, solfejavam a Internacional Socialista. Velhos camaradas.
São pessoas cultas, sabem o que significou o massacre do Grande Expurgo, que um dos ídolos, Trotski, foi expulso da União Soviética e assassinado a mando de outro, Stálin. E no programa da viagem dos neo-tovarichs só havia espaço para Moscou.
Pularam São Pertersburgo, grande centro cultural, sede do museu Hermitage, conhecida como a capital dos czares russos e por Noites Brancas, livro em que Dostoiévski nos apresentou ao Sonhador, além de ter sido a sede da resistência contra os invasores nazistas. Nada disso emocionava a caravana.
Aquela turma de tardios sonhadores não iria nunca a uma cidade que, rebatizada em homenagem a um dos líderes da revolução – Leningrado –, voltou a ter nome de santo. Uma afronta aos ateus, maioria ali. Também não iriam a Volvogrado; fazer o quê, se riscaram do mapa o inspirador nome de Stalingrado?
Sabíamos tudo isso antes da ida, em meados de outubro do já distante ano passado, mês da revolução. Os amigos que ficaram – se não camaradas, solidários – aguardavam a volta com a curiosidade aguçada por tantas conversas preliminares, vibrantes e cheias de expectativa.
Mas nada de alguém aparecer. Passaram-se os meses até que por acaso encontro um dos turistas revolucionários na saída de um elevador; tentei sentar para um café, mas não tinha jeito, e só deu para um papinho, ali mesmo, em pé, rapidamente. Ele não disse muito; mas estava incomodado: “Sabe quando você ficou longe de um lugar por muitos anos e quando volta se decepciona porque nada mais é como era antes? Pois é, foi pior”.
Mas a turma não desanimou. Em julho, enquanto o mundo se virar para a Rússia e curtir um ópio, vão todos para uma nova excursão: desta vez, para a Venezuela.
Publicada no Correio Braziliense, em 5 de janeiro de 2018