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Quando o povo canta

Publicado em Crônica

No princípio eram contrafações: Cauby Peixoto, Orlando Dias, Carlos Alberto. Vozes potentes, como se exigia de cantores da época, mas com uma interpretação mais teatral, ainda mais exagerada do que os gigantes do rádio. Depois, vieram outros tantos, na improvável mistura de rock (iê-iê-iê) e bolero, com vozes mais juvenis: Paulo Sérgio, Reginaldo Rossi, Odair José, entre muitos outros.

Era essa a verdadeira música popular do Brasil, bem distante daquela que receberia a marca MPB, com canções que sensibilizavam as elites, mas deixavam o povo de fora da festa. Com a ascensão dos artistas sertanejos, que incorporaram guitarras, coros e gala às interpretações em duo, essa música ficou ainda maior, incorporou as elites que, mesmo torcendo o nariz, não resistiam aos refrões grudentos.

Esta é a linha que Marília Mendonça perseguiu desde os 12 anos de idade, quando começou a compor para outros cantores, se preparando para uma fulminante carreira solo terminada tragicamente aos 26 anos. O que explica a comoção pela perda de um cantor popular – além da crueldade de chegar no auge da juventude e da produção – é a comunicação direta que eles conseguem ter com o público.

As letras pueris, que quando lidas não seriam dignas nem dos romances mais vagabundos de banca de revista, se encaixam perfeitamente em melodias que amplificam significado e explodem na catarse da multidão. É tudo tão simples, tão instintivo, que dispensa explicação.

Lembro do dia em que Edelson Moura, estrela da Rádio Nacional da Amazônia, me mostrou uma música que estava compondo: “O amor é um bichinho, que rói, rói, rói/ Rói o coração da gente/ E dói, dói, dói”. Era o resultado de anos de conversas com os ouvintes, das centenas de cartas que ele recebia todos os meses aqui em Brasília, uma conexão direta com o povo.

O cantor popular de verdade não tem filtro. A música O Fruto do Nosso Amor (Amor Perfeito), gravada por Amado Batista, nasceu assim, depois que a irmã de um dos compositores, Vicente Dias, morreu na sala de parto. “Música tem que falar com o povo”, me disse certa vez.

Odair José foi perseguido pela censura, entre outras coisas, por “exaltação ao amor livre” ou “assunto inconveniente”, mas compôs canções pudicas como Eu, Você e a Praça, onde o máximo avanço foi “encostar o meu corpo em seu corpo”. Ele me disse: “Toda cidade tem uma pracinha, tem namorado; é só um retrato da realidade”.

O cantor popular de verdade conhece o Brasil profundo e o brasileiro dos grotões, fala com eles. Canta em circos, botecos, cabarés, onde tiver um microfone. Hoje estão mais sofisticados, ficam em hotéis estrelados, têm jatos e fazendas cheias de gado, mas cheguei a acompanhar alguns deles em tempos de vacas magras.

Dessas aventuras nasciam novas canções, dessas que falam diretamente com a alma do sujeito comum, que fazem marmanjo bruto chorar na mesa de bar, porque aquilo remete a alguma coisa que ele viveu. É por isso que cantores como Marília Mendonça fazem falta.

P.S. – Dias antes, o Brasil havia perdido um de seus tesouros, o pianista Nelson Freire. O tratamento que cada um recebeu é um retrato dos nossos dias.