A vida moderna está mexendo com as famílias. O formato tradicional do lar ainda se mantém firme, mas encontra uma série de alternativas, hoje encaradas normalmente e reconhecidas até pelas entidades religiosas menos progressistas; ninguém mais estranha quando é apresentado a duas mães de uma mesma criança, por exemplo.
Mas as aparências muitas vezes engam. Alguns costumes estão arraigados demais, até mesmo entre os mais jovens, que têm a obrigação – digamos – etária de encarar as mudanças com a cabeça mais aberta. Mas é uma certeza que essas coisas funcionam muito melhor à distância; quando chegam perto demais a reação pode ser bem diferente.
Engenheira, nossa amiga se acostumou a lidar entre homens; vestiu rosa e brincou de boneca na infância, como era praxe na época da ministra Damares, mas desde a faculdade ela é minoria nas rodas, na cervejada depois das aulas, formatura e até no emprego, onde se destacou pela competência num mundo quase que exclusivo deles.
O resultado dessa convivência é o hábito – e não no sentido do modo de ser, mas da vestimenta mesmo. Desde que começou a seguir a carreira, vestiu o que era quase um uniforme: passou a usar calça jeans e chapéu de pano, até fora do serviço. Poucos se lembram de tê-la visto de saias ou vestido.
O brim é mais ou menos padrão para os colegas da profissão, que precisam frequentar obras, lidar com trabalhadores braçais, enfrentar poeira, sol na cabeça e muitas vezes, e literalmente, botar a mão na massa. E ela levou a vida profissional assim.
O avanço das mulheres em profissões consideradas masculinas é inegável. E a nossa amiga se destacou, comandando obras em Brasília, em outros estados e até fora do país; endureceu sem perder a ternura.
Ainda assim a vaidade não era o forte; bonita, nunca perdeu muito tempo se arrumando, nem mesmo depois de se separar do primeiro marido, período da vida em que mulheres e homens capricham um pouquinho mais no visual. É um tempo de pescaria.
Preferiu se empenhar ainda mais no trabalho, sem deixar de lado a criação dos filhos, desdobrando-se como só as mães conseguem fazer. Recasou, teve mais uma filha, se aposentou e mantém o mesmo despojamento enquanto cuida dos netos. Passou a fazer esportes, o que a vida atribulada a impedia. Claro que os músculos cresceram.
De tempos para cá começou a apresentar bíceps avantajados, perfil mais rígido, mãos calejadas e postura ereta. O amor pela cerveja, antigo, continuou e as posições políticas ficaram ainda mais firmes.
As filhas começaram a se preocupar; zelosas, passaram a se revezar para levar a mãe ao salão de beleza pelo menos uma vez por semana, contribuíram com peças de roupa com um toque mais feminino e até assinaram as revistas Cláudia e Marie Claire.
Semana passada as duas filhas deram um estojo de maquiagem. A mãe estrilou: “O que é isso, meninas?”. A mais velha nem procurou disfarçar: “É o nosso projeto Mamãe, não sai do armário”.
Deu certo: hoje ela usa até batom.
Publicado no Correio Braziliense, em 15 de novembro de 2019