Em tempos marciais, só a poesia pode mostrar que a vida ainda faz sentido. Poetas são peças de resistência, formam a infantaria da emoção para combater a falta de razão que grassa de todos os lados. E Brasília nasceu sob a influência da musa; ainda que encomendada, a seminal Sinfonia de Alvorada traz versos de Vinicius de Moraes.
O poema busca a gênese na cidade a partir do ermo inicial, do agreste, das paisagens, até chegar à óbvia mas fundamental constatação: “Por entre as matas recortadas./ Não havia ninguém”. Desde então muitos poetas tentaram extrair versos de poeira e concreto e a cidade passou a ser cantada, como todas merecem ser.
É uma tradição que vem, pelo menos, desde a Grécia antiga, quando os artistas eram acompanhados de seus forminx, espécie de citara simplificada, ao declamar versos. O mundo ficou imenso na mesma medida em que as distâncias encurtaram, mas a poesia vem sobrevivendo, cantando metrópoles e cantões.
É aqui que entra Climério Ferreira, que recentemente comemorou seus 40 anos de poesia, relançando seus três primeiros opúsculos. Muito conhecido por suas canções, Climério é, sem favor, um dos grandes poetas brasileiros; perscruta a alma humana ao mesmo tempo em que canta as coisas do seu Piauí natal.
Mas o poeta tem duas aldeias a cantar. Brasília está entranhada nele há décadas, tanto que outro dia mesmo, voltando do Piauí, ele escreveu: “Feliz por ter ido/ E feliz por voltar/ É muito bom ser de lá/ E é muito bom morar aqui”.
Mas ele foi ainda mais fundo, repisando o terreno por onde o grande amigo Vladimir Carvalho andou com o filme Conterrâneos Velhos de Guerra e fez um poema-ópera sobre os primeiros da grande aventura brasileira. É uma viagem pelo tempo, com cor, cheiro e sabor.
ÓPERA DA CONSTRUÇÃO
Climério Ferreira
Corria o ano da fundação
Com o sol cobrindo o planalto vazio
A retorcida vegetação
Sofria ao relento de frio
O céu, e o céu tomava tudo
A circunferência do olhar
Em cada quadrante uma cor
O céu, imenso horizonte graúdo
Substituto perfeito do mar
Que no espaço se derramou
A vida era no Núcleo Bandeirante
Cortado por muitas avenidas
Uma favela transplantada
Que crescia a cada instante
A vida era na Cidade Livre
Presa a lembranças trazidas
Cheia de coisa deixada
De sofrimento constante
Uma poeira laranja
Dava um aspecto de Marte
A natureza abatida
Na qual nada se esbanja
E tudo parece arte
Feita por planta torcida
Todo mundo era candango
Sem importar de onde vinha
Aqui cruzaram sotaques
Uniram-se bandido e anjo
Velho com moça novinha
Botas, polainas e fraques
E tinha hotel de madeira
E de madeira hospital
E de madeira a igreja
Casa de mulher sendeira
Padre Roque esbravejava
Mandando aos quintos do inferno
Quem ousasse assistir
O Pagador de Promessa
Naquele cineminha de madeira
Da Avenida Central
A lama da rua
Cheia de marcas de pneus
E as taperas comerciais
Que surgiam a cada momento
Davam o ar de cenário
Ao real faroeste brasileiro
Publicado no Correio Braziliense, em 9 de fevereiro de 2020