A única individualidade que nos sobrou foi o pensamento. Mas não por muito tempo. Cientistas anunciaram que estão desenvolvendo uma máquina capaz de ler pensamentos a partir da reação do cérebro diante de algumas frases; mais um pouco os robôs vão escanear os miolos da gente e interpretar o pensamento.
Naquela tarde ele estava mais excitado que o normal. Interessado em assuntos do futuro – e isso vai desde o planeta Mongo nas aventuras de Flash Gordon até a saga de Guerra nas Estrelas – Bana defende que não existe essa coisa de ficção científica; segundo ele, tudo o que está nos livros e nos filmes, mais cedo ou mais tarde, vai ser parte da vida de todos nós.
E é quem, vez por outra, ilustra a mesa do bar com os casos mais escabrosos, uma vez que a futurologia está quase sempre ligada ao terror, no mínimo a alguma ameaça. Bana é carioca – o apelido é a metade posterior de Copacabana – e está aposentado; ex-bancário, agora vive em sebos buscando livros antigos com previsões científicas para o futuro.
Ele quer comprovar a teoria de que tudo será possível. Mas desta vez ele estava obcecado com a notícia da leitura do pensamento. Um cinéfilo da mesa lembrou do filme com Mel Gibson que, depois de um acidente, passou a ler os pensamentos das mulheres; há mais filmes com o tema, inclusive alguns bem ruins, como Crimes Premeditados, mas para o Bana tudo isso é bobagem.
Pacientemente ele explicava como funcionam os métodos que a ciência está desenvolvendo para romper mais essa barreira. E que isso vai facilitar a vida de pessoas que hoje estão paralisadas e serão capazes de se comunicar com aparelhos por meio de eletrodos fixados na cabeça e que vão funcionar como um blue tooth de aparelho de som.
Bana ia misturando os exemplos de coisas boas que virão com a liberação do cérebro, da esperança dos cientistas em transformar o ser humano a partir dessa experiência – será possível implantar memórias que podem aniquilar as neuroses e outras psicoses, por exemplo. Também haverá como influenciar o comportamento das pessoas.
De um canto da mesa, Faixa observava a reação positiva de todos e os elogios ao progresso, ao mundo perfeito, ao ser humano sem defeitos – ou, no mínimo, recondicionado como se fosse um motor de Gordini – até que falou: “O Santos Dumont se suicidou porque usaram a invenção dele para jogar umas bombinhas”.
Certamente o professor Volnei Garrafa poderia explicar melhor as implicações éticas do uso de uma máquina dessas. Mas o Faixa foi bem didático quando alertou para o que seria ainda mais grave quando começassem a ler pensamentos – “vai acabar a mentira, o mundo não sobrevive com tanta sinceridade, vai ser um morticínio”.
“Imagina chegar em casa sem poder inventar uma desculpa para o atraso. Meu casamento não sobrevive. Nem o de vocês”, disse, partindo para a acusação.
Pior será a situação dos políticos, tentando pensar em gatinhos fofinhos, enquanto o juiz pergunta: “De quem é o sítio?”
Publicado no Correio Braziliense de 26 de janeiro de 2018