Pode ter começado com animais de estimação. As pessoas começaram a apresentar seus bichinhos a partir do pedigree, que é a certidão de nascimento, muitas vezes acompanhada da árvore genealógica, dos cães, logo estendida a cavalos e gatos, ou a qualquer outro bicho. Mas até aí tudo bem: pets são mais da família que muitas tias e cunhados.
O exagero é apresentar coisas que veem engarrafadas, uma dessas pragas modernas. Antes de servir um vinho o sujeito conta a história da uva, do país de origem, a idade do barril e umas coisas esquisitas que você é obrigado a sentir quando coloca um golinho na boca, como se aquele líquido, que nem balança o rabo, também tivesse pedigree.
A modinha chegou às cervejas, apresentadas com pompa, circustância e frescura, características contrárias às raízes festeiras da bebida. Vestiram fraque, polainas e cartola no popular líquido; até os velhos cascos marrons, antes preferidos por proteger a cerveja dos raios solares, foram substituídos por garrafas verdes, exatamente as que eram recusadas.
Agora é o whisky. Gregos e árabes ainda discutem para saber quem criou a primeira bebida destilada, origem de tudo. Mas são os escoceses que batizaram e produziram o mais tradicional “uisge beatha”, água da vida em gaélico, língua que pictos, gaels e britanos falavam antes dos dinamarqueses atravessarem o mar e bagunçar o coreto.
O velho whisky vinha escapando dos modismos. Acabou a sopa. Uma das mais tradicionais marcas agora se apresenta como produto aveludado e vibrante; vai além: com “camadas de frutas secas e fumaça cítrica”.
Até pouco tempo whiskies eram apresentados com a sobriedade britânica que merecem; no máximo, eram classificados pelo sabor mais ou menos encorpado, pela pronúncia do aroma e pela maciez. Mas vivemos um tempo de excessos e uma marca tradicional, agora produzida em barris antes ocupados por vinho e conhaque, da seguinte forma:
“Aroma: notas florais, cítricas e de lúpulo, com traços sutis de frutos do pomar, complementadas por um gosto de frutos secos e aparas de madeira. Sabor: notas de lúpulo e cítricas ligeiras, com ervas doces e toques delicados de especiarias. Final de boca: os sabores persistentes de fruta fresca e lúpulo dão lugar a grãos de cevada e ao característico suave paladar final”.
Ao final, recomendam alternar um gole do whisky com outro de cerveja ipa. Talvez alguém sobreviva a um coquetel desses.
Enquanto estávamos na seara da propaganda, tudo bem. Mas a praga chegou ao botequim. Dia desses o sujeito adentrou a um estabelecimento munido de uma garrafa de cachaça, alardeando que todos provassem o produto desenvolvido por ele mesmo a partir de uma plantação de cana na Fercal e fervida em alambique de porcelana.
Fez detalhada explanação, a partir do manejo da cana sem agrotóxico e com mistura de espécies – caiana, preta e manteiga – que, diz ele, ajuda no caldo. E seguiu numa ladainha sem fim para ressaltar as qualidades do líquido, quando foi bruscamente interrompido. Era o Mário:
– Amigo, deu sede; pinga boa é a que vai do copo para a goela. Faz uma presencinha aqui – e estendeu o copo.
Publicado no Correio Braziliense em 14 de julho de 2023