Bicho de asa pode ir aonde quiser. É difícil imaginar alguém que nunca tenha tido vontade de ser um passarinho, voar a esmo, como o menino (e futuro rei) Arthur no desenho animado A Espada era a Lei, de Walt Disney. Ele, transformado num pardal para conviver com a sabida coruja Archimedes, descobriu a magia de voar.
Passarinho é, não por acaso, um sinônimo de liberdade absoluta, ainda que, como toda independência, carrega seus riscos – no caso, um estilingue, uma espingarda de chumbinho ou, pior, uma gaiola. Mas o céu é o limite. De árvore em árvore, de poste em poste, um canário pode passar seus 10 anos de vida, um pardal pode viver seus três anos.
Aí eu fico me perguntando porque aquele sabiá-laranjeira não sai do meu quintal. Eu sei que é o mesmo passarinho porque só tem uma perna, a esquerda, e vive saltitando perto da jabuticabeira, embora dê rasantes para se aproveitar da ração da Bagunça, a boxer.
É um lugar de comida farta para bicudos e a única ameaça é o mau-humor dos bem-te-vis, parrudos e que piam mais alto; mas ainda assim são poucos metros quadrados para quem tem asas. Imagino que, se tivesse asas, não moraria em lugar nenhum.
Pensei chamar o sabiá de saci, mas além de soar preconceituoso, não condiz com a personalidade do ser de carapuça vermelha, rebelde, bagunceiro, indomável. O sabiá de uma perna só é bem mais tímido; as vezes fica encarando, mas sempre de uma distância segura; e só gorjeia quando está só.
Ele se dá bem com o casal de Joões de Barro – sim, ela também se chama João – que faz o maior escarcéu na pitangueira, esperando o bem-te-vi terminar de engolir os grãos de ração da cadela, depois de batê-los contra a borda do pote de alumínio. Os três ficam sempre próximos, sem dúvida se protegendo do valentão de peito amarelo.
O casal não mora no quintal; só aparece na hora de comer. Ao contrário dos dois asa-brancas que estufam o peito para arrulhar quase sem abrir o bico e que adotaram os galhos da mangueira como lar; os ovos não estão mais no ninho, mas não há sinal de filhotes.
Toda essa fauna sumiu recentemente quando os cajuzinhos do cerrado apareceram com seu vermelho vivo, atraindo um trio de imensas araras. Os outros pássaros devem ter se intimidado com as majestosas vestes de penas azuis e largas asas; sumiram todos. Até os saguis, que pulam mas não voam, desistiram da visita matinal.
Mas as araras prezam as asas que têm. Bastou a safra do cajuzinho passar que elas foram procurar outro lugar, ou lugar nenhum, como devia ser regra para quem pode voar. Os demais estão de volta. O casal oleiro, que acredito ser o mesmo, embora não dê para afirmar; os dois asa-brancas (também conhecidos como pombas do mato), os valentões bem-te-vis e até o sabiá perneta, meu favorito.
De que adiantam as asas se a gente não sabe para onde ir?
Publicado no Correio Braziliense em 3 de novembro de 2019