O milagre sem fio

Publicado em Crônica

As posições são quase sempre as mesmas, em volta da mesa, pelo menos para os mais assíduos. Antiguidade é posto, diriam os militares que também frequentam rodas musicais da cidade. Não há uma ordem como nas orquestras, onde a percussão fica num canto, metais em outro, cordas à frente – é muito mais uma questão de afinidade musical entre as pessoas.

Assim é que Índio Sete Cordas – o novo nome de guerra do coronel reformado do Exército, hoje dedicado aos netos e aos violões – fica sempre de costas para a parede, na extremidade mais à esquerda da mesa, sempre entre Otávio, violonista seis cordas, também coronel reformado, e Josiel, percussionista, civil.

Aos 86 anos, Índio mostra destreza nos bordões e gosta de se levantar da cadeira em alguns solos, como se fosse um músico das antigas big bands do jazz. No tampo do violão, traz a bandeira gaúcha, aquela que mostra o ideal revolucionário do povo dos pampas tingido de vermelho sangue entre o verde que representa as matas e o amarelo das riquezas pampeiras.

Mas Índio não está vestido para a guerra. Ao contrário, só se levanta para registrar seu grito de paz na forma de bordões bem construídos e que funcionam como breques nos choros e sambas, ou solando músicas desafiadoras como Sons de Carrilhão, de João Pernambuco, perenizada na interpretação de Dilermando Reis.

Os demais músicos ficam quase sempre sem grandes mudanças, sentados; mesmo os percussionistas, que não dependem tanto da amplificação. Mas a roda musical que acontece todo final de tarde de domingo, n’O Grao, bar localizado no final da pista central do Lago Norte, consegue extrair harmonia desse aparente desarranjo e, sim, há uma certa liderança, até porque o violonista Sanson não deixa a receita desandar.

Há um núcleo central de fiéis frequentadores e um rodízio de convidados eventuais, que chegam, sentam e tocam, se incorporando ao ambiente. Os desavisados podem achar que a fórmula é repetitiva, mas se enganam.

Mas as coisas mudam e para melhor. Se Raul nunca mais apareceu com um bandolim novo, Índio chegou com um aparelhinho novo espetado no violão; um transmissor que dispensa o uso de fio para eletrificar o instrumento e permite total liberdade de movimentos. Agora ele não se limita a seu lugarzinho de fé; se levanta e anda de um canto a outro, como forma de dar mais força aos bordões.

O aparelhinho é terapêutico, quase milagroso. Índio caminha quase sempre com o auxílio de uma bengala; é um apoio eventual, mas ainda assim um arrimo que garante mais segurança ao alor suave das pernas. Mas quando está com o violão pendurado pela correia e concentrado nas músicas ele não precisa de ajuda nenhuma, flana lépido e fagueiro em volta da mesa, empolgado com o andamento musical.

O andar de Índio Sete Cordas deu um novo impulso à roda. Não chega a ser um Chuck Berry, mas tem levantado a plateia, ao sentir a vibração que vem do instrumento e do músico, que remoçou uns 40 anos.

 

Publicado no Correio Braziliense, em 25 de janeiro de 2019