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O grande êxodo

Publicado em Crônica

Botequim é um lugar que não existe. Ou melhor, há um espaço físico, balcão, cadeiras e geladeiras; mas o que importa mesmo são os frequentadores, pessoas que vão formando uma confraria, estreitando laços, dividindo problemas, angústias e alegrias. É um porto seguro para gente que nem navega, embora alguns enjoem.

A renovação do elenco de um bar é lenta, passa por etapas que vão desde mudanças de residência a idade, quando o sujeito passa a ir à farmácia com mais frequência que ao boteco. Mas quando acontece o êxodo, o caso é mais sério; como na cena bíblica, é um espetáculo triste de se observar.

Está acontecendo uma retirada em massa agora mesmo. O bar que o pessoal frequentava há anos, alguns há mais de década, está sendo substituído por outro estabelecimento; como na Bíblia, homens cansados da escravidão e dos maus tratos que vinham sofrendo desde que a idade os obrigou a beber mais parcimoniosamente e dispensar os gordurosos – e deliciosos – petiscos do lugar vão em busca do bar prometido.

É uma espécie de gentrificação boêmia. Gentrificação é um termo relativamente novo que define mudanças urbanas criadas a partir de motivações externas, normalmente por questões econômicas. Assim, famílias vão sendo levadas para regiões cada vez mais periféricas, de acordo com a valorização das áreas em que moram originalmente; no DF é um fenômeno constante por causa do crescimento acelerado.

Quando o negócio chega às bodegas é mais complicado. Ninguém gosta de mudar de bar; quando o faz é porque não há outro jeito. O caso recente começou lentamente. Um dos veteranos frequentadores, aliás, o decano, deixou de ir depois de se sentir ofendido a partir de uma miserável conta.

O consumo do boêmio é coisa séria. Colocar uma cerveja a mais na conta é uma acusação gravíssima, equivale a chamar o sujeito de descontrolado. Não é pelo dinheiro, ainda mais no caso do nosso personagem, bem de vida, que amealhou um bom patrimônio durante suas décadas de trabalho como médico. É pela satisfação de ter consciência do que consumiu.

Que se cobre por um quitute a mais; nunca por uma dose não consumida. Foi o que aconteceu e ele, orgulhoso como um toureiro espanhol, preferiu mudar de ares. O bodegueiro não se interessou em demovê-lo da ideia, talvez porque já não consumisse como antes.

Como um Moisés de Cecil B. DeMille, mas sem cajado, arrastou outros companheiros também maltratados para outro bar – que nem é realmente um bar, mas um barraco improvisado.

Com a altivez de um Charlton Heston na fita Os Dez Mandamentos, guiou o povo para um lugar ainda inóspito, mas que já servia cerveja gelada e empada. Mais nada. Há coisa de alguns dias, foi instalada uma churrasqueira para servir espetinhos; também já é possível consumir um caldo de frango e a promessa para o próximo final de semana é uma galinhada.

É o ciclo da vida que se renova permanentemente. E nesses tempos de filosofia barata, é como dizem Timão e Pumba em O Rei Leão, usando o suaíle: Hakuna Matata.

Publicado no Correio Braziliense, em 14 de junho de 2019