Ela não é da alta. Ao contrário, é bem classe média. Mas tem bom gosto para literatura, poesia, música; enfim, para essas coisas que realmente importam na vida da gente. Gosta de Chico Buarque, algum Caetano, canções que não apenas contém uma história, mas que tenham também um pouco de poesia.
Mas dia desses, enquanto aguava as plantas do jardim, ela se pegou cantando Benito di Paula: “Ah, como eu amei/ Ah, eu caminhei/ Ah, não entendi”. Aos poucos, foi se transformando numa tortura. Ela não sabia o resto da letra, não se lembrava nem a sequência da melodia para, ao menos, poder solfejar.
Chamou o cachorro para ver se tinha carrapato, tentou pensar no que faria para o almoço daquele dia, arrumou todo tipo de ocupação, mas entre um pensamento e outro lá vinha o Benito – “Ah, como eu amei/ Ah, eu caminhei/ Ah, não entendi”.
Pensou em dar um mergulho na piscina para afogar aquela música pegajosa mas se desesperou só em imaginar o que poderia acontecer no silêncio da submersão. O dia passou rápido como passam os dias de gente ocupada – ela se aposentou, mas não tem tempo para nada – e antes de fechar os olhos ouviu o Benito.
Ela acorda ainda de madrugada para remar. Não se lembrava mais da tortura do dia anterior, até que alguma sequência de ruídos despertou o monstro: “Ah, como eu amei/ Ah, eu caminhei/ Ah, não entendi”. De novo, o refrão a acompanhava por todo o canto, até que ela não suportou e mandou uma mensagem para os amigos pedindo socorro.
“O que é que você faz quando está há dois dias com a música mais brega do Benito di Paula fazendo fundo musical para seus pensamentos? Dá um tiro na cabeça?”, escreveu. Nem tudo se resolve a bala. Os amigos foram solidários, mas ninguém resolveu a relação dela com o Benito, que continuou ali, martelando seu pianinho.
Foi-se o tempo em que os acadêmicos se dedicavam a manifestações científicas palpáveis ou projeções futurísticas. Hoje tudo é motivo de estudo e pesquisa. Aproveitando a falta do que fazer, professores da Universidade de Durham, no norte da Inglaterra, resolveram investigar e solucionar o grave problema da música-chiclete.
O responsável pela pesquisa acredita ter decifrado o enigma. “Estas músicas grudentas parecem ter um compasso bem rápido e uma forma melódica comum e intervalos ou repetições diferentes”. Palavras de quem não conhece o indolente samba do Benito.
Foram ouvidas mais de três mil pessoas e elaborada uma lista com possíveis soluções. A sugestão mais comum é ouvir a música toda; normalmente, como aconteceu com a nossa amiga, só fica um pedacinho grudado na memória. Outra solução seria cantar o hino God Save the Queen, mas como ficaria difícil para a maioria dos brasileiros, sugiro substituir por “Atirei o pau no gato” ou “Maria Chiquinha” – o risco é uma delas grudar em seguida.
Os professores britânicos também sugeriram cantar trechos de ópera. Fiquei imaginando minha amiga remando no lago e cantando La Donna é Mobile, do Rigoletto.
Publicado no Correio Braziliense em 21 de setembro de 2018