Me parece que tudo começou quando foi proibido fumar no cinema. Não na plateia, o que é compreensível numa sala fechada, mas na tela mesmo. Era a primeira manifestação politicamente correta e que deu nisso que temos hoje: um monte de cota a cumprir, um bocado de coisa que não pode ser dita nem a adultos e a crença de que todos somos influenciáveis por qualquer bobagem.
No caso do fumo, a pressão que a Organização Mundial da Saúde fez sobre os estúdios de Hollywood é compreensível. A indústria do tabaco pagava para que as estrelas do cinema transformassem o ato de fumar em virilidade, casos de Clark Gable, Spencer Tracy e Cary Grant, ou sedução, na fumaça exalada pelas bocas de Joan Crawford e até Bette Davis, que nem era essa beleza toda.
Ainda nos primórdios do cinema, Al Johnson, astro do primeiro filme falado, dizia que Lucky Strike era “o cigarro dos atores”. Praticamente todos os grandes atores fumavam em cena; alguns filmes como Casablanca praticamente sopravam fumaça na cara da audiência.
Os tais especialistas acreditam que esses filmes antigos continuam incentivando as pessoas a fumar, mas como ainda não fizeram a brilhantina voltar à moda, podemos duvidar. Ainda não apareceu nenhum gaiato querendo cortar as cenas com baforadas de James Bond e Humphrey Bogart, mas é bom não duvidar desses revisionistas.
Se no cinema o espião de Sua Majestade está incólume, nos livros o negócio é diferente. Bond não é exatamente um personagem bom caráter, afinal faz qualquer coisa para cumprir suas missões. Mas a partir deste mês ele vai falar com mais educação, preocupando-se em não ofender ninguém. Os livros estão sendo reescritos.
Ainda não cassaram sua licença para matar e ele, parece, continua empertigadamente heterossexual, mas não chama mais um afrodescendente de “niger” – e nem vai dizer que eles bebem demais, como numa passagem de Viva e Deixe Morrer. Num inferninho, Ian Fleming escreveu: “Bond podia ouvir o público ofegando e grunhindo como porcos no cocho”. O trecho vai ser excluído, provavelmente por ofender bacorinhos.
Vilões – mesmo os piores – serão tratados apenas como gângsters, o que na cabeça dos adaptadores vai reduzir a maldade intrínseca ao Dr. No. Na literatura infantil a revisão é ainda mais radical; em O Fantástico Sr. Raposo, livro de Dahl Roald, Bunce, o anão barrigudo, não tem mais nanismo nem a protuberância abdominal. É só Bunce; a criança que o imagine como quiser.
No Brasil, a malcriada e boquirrota Emília, de Monteiro Lobato, é a principal vítima do revisionismo. Sem papas na língua, a boneca de pano conta o plano das onças para devorar os moradores do Sitio do Picapáu Amarelo: “Não vai escapar ninguém. Nem Tia Anastácia que tem a carne preta”. Não basta colocar uma nota explicativa do contexto em que a obra foi escrita?
O cartunista – e criador do Menino Maluquinho – Ziraldo desenhou Lobato abraçado a uma mulher negra. “Que m* é essa?”, perguntava. Até hoje ninguém respondeu.
Aliás, Ziraldo é autor de um famoso pôster antitabagista no qual, atrás de uma loira emperiquitada, estava escrito: Fumar é cafona.
Publicado no Correio Braziliense em 30 de abril de 2023