Jovens de ontem

Publicado em Crônica

A turma conversava animada; o assunto eram os primeiros anos de Brasília, época de pioneiros, quando o tempo parecia passar mais devagar e a cidade se oferecia gentilmente a quem chegava. Devia ser o espírito da passagem de mais um ano pairando sobre a roda, com a colaboração do hiato dos campeonatos de futebol, assunto preferido do bar.

Histórias eram desfiadas do novelo da memória de cada um, quase todos já aposentados, e a epopeia da consolidação da nova capital iluminava as retinas com imagens acesas pela ilusão colorida do tempo vivido. Eram lembranças doces, cheias de agradecimento; não havia espaço para arrependimentos.

Na mesa ao lado, com a doce rudeza – ele prefere de chamar de sinceridade – que lhe é peculiar e de uma tacada, Zé Maria acabou com a digressão emotiva: “Ninguém tem saudade da Brasília dos primeiros anos, que era uma dureza, não tinha nada para fazer, era longe de tudo, uma poeira só. As pessoas têm saudade é delas mesmas”.

Zé Maria tem nome feminino na carteira de identidade, mas isso não lhe garante qualquer sensibilidade extra. Ao contrário, é grosso como papel de embrulhar prego. Bancário, passou a vida atrás de um caixa, atendendo clientes, o que desperta a curiosidade de quem o conhece hoje, atirando palavras ríspidas e definitivas sobre qualquer assunto. Ou ele mudou muito ou a vida dos correntistas era um inferno.

Houve protestos com a abrupta interrupção, mas aos poucos deram razão à visão menos romântica da jovem capital. “Não foi fácil mesmo; a família demorou a se adaptar”, lembrou-se alguém. “Havia um espírito de estar participando da História, mas nenhum conforto; era preciso fazer novos amigos, criar uma comunidade”, completou outro.

Para um jovem a situação era difícil. Hoje arquiteto reconhecido, Luiz Philippe Torelly chegou a Brasília no meio de uma crise familiar – a mãe não queria deixar o Rio – e com seis anos de idade. Ele é um dos muitos brasilienses que estão registrando suas histórias em livros (o dele chama-se Memória e Patrimônio) e também mostra que gostava mais de ser jovem do que da cidade.

Lembra-se das limitadas opções de lazer; de fazer “footing” em volta do Gilberto Salomão, que era uma espécie de pracinha da cidade, das missas da “paquera” na igrejinha, quando estavam mais interessados nas saias das moças do que na batina do padre. Lembra-se do luau na beira do lago, regado a vinho barato de garrafão e dos acolchoados que ficavam nos porta-malas, prontos para serem estendidos no chão duro do cerrado.

O olhar de Torelly – que tem na árvore genealógica o Barão de Itararé, expoente da nobreza do humorismo brasileiro – é condescendente, o que justifica a observação do Zé Maria. Afinal, jovem arruma o seu lugar, dá jeito.

O ambiente inóspito se tornou fértil e Brasília é hoje a cara de seus jovens de antigamente. Torelly ainda era um protoboêmio; ao contrário de hoje, boêmio completo, que bate ponto do Beco do Chopp, sempre com um copo na mão e uma boa prosa.

 

Publicado no Correio Braziliense, em 7 de janeiro de 2018