O ermo. Vinicius de Moraes tinha alguma obsessão com este substantivo, presente em algumas de suas poesias – eróticas, como Ah, como eram belos neste instante os ermos marítimos…, ou românticas como Redondilhas para Tati e Soneto do Amor como um Rio – e que definiu o local onde surgiu Brasília, na Sinfonia da Alvorada.
Sabe-se que nesta terra viveram tribos pré-colombianas que deixaram instrumentos rudimentares e pinturas rupestres para marcar presença; sabe-se que garimpeiros em busca de ouro criaram pequenos núcleos habitacionais na época dos bandeirantes; e que depois fazendeiros portugueses ocuparam a região, trazendo escravos.
Mas o poeta tem razão. Só o canto agudo e insistente da siriema quebrava o silêncio absoluto, quando chegaram os homens abrindo picadas no cerrado, que logo se transformariam em rasgos simétricos e que, em mil dias, ergueriam uma cidade; não uma qualquer, mas um marco para começar um novo Brasil. Um monumento.
59 anos depois, Brasília ainda é um mistério para a maioria dos brasileiros. Mas a febre inicial daquela contagiante loucura passou e deu lugar a uma passiva sanidade nacional, um racionalismo radical que reduziu a promessa bem-aventurada; a cidade nasceu de uma mistura de utopia e loucura e caiu nas mãos de gente que não sabia sonhar.
Brasília cumpriu parte de seu destino, exatamente a ditada pelo neocórtex cerebral, que lida exatamente com o pensamento reto e menos sofisticado – tirou a elite do litoral, aumentou o tamanho do país, fez o Brasil se enxergar como um todo. No hemisfério direito, habitam as emoções; este foi deixado de lado pelas tais autoridades.
Ainda bem que o povo tomou conta. Houve tempo em que o brasiliense tinha obrigação de falar bem da sua cidade; havia um mecanismo de defesa rapidamente absorvido até mesmo pelos recém-chegados, que rebatiam até com certa violência qualquer ressalva que se fazia à cidade. Tudo fruto do combate sistemático contra a nova capital.
Hoje Brasília nem liga para a capital. A relação amorosa da cidade com sua gente independe das opiniões alheias; é uma cidade calorosa que juntou o melhor que cada colônia trouxe de todos os cantos do Brasil e misturou num cadinho que nem precisou ir ao forno.
A santa loucura de JK e seus camaradas impulsionou a cidade em seus anos de formação cultural; hoje, abraçamos o convencional, a brasa da invenção anda abafada pelas cinzas de políticas culturais equivocadas, que valorizam as manifestações mais universais e deixam de lado as invenções da cidade. Mas isso vai passar.
Brasília é filha da invenção, não merece ser tratada como uma cidade qualquer; se os problemas sociais são os mesmos de toda grande metrópole é preciso investir na identidade da nossa gente, na criação e manutenção de um jeito e um sotaque próprios. Nossos poetas andam calados, os músicos tocam em surdina, os atores e dramaturgos não saem mais da coxia. A lei do silêncio se impôs.
Mas a loucura está no ar. Basta catalisar e transformar em atividade e arte. Não vamos voltar ao ermo.
Parabéns, Brasília.
Publicado no Correio Braziliense, em 21 de abril de 2019