O caldo de mocotó é um desses pratos que servem de referência para a vida da gente. Ninguém esquece um bom mocotó. Assim, não surpreende o fato do ex-presidente Lula, em seu último discurso antes da prisão, ter citado a iguaria como símbolo de seus tempos de sindicalista, citando a fidelidade da turma que frequentava o bar do Zelão e que ainda está com ele, ao contrário do pessoal de gravatinha, que sumiu.
Daqui não dá para atestar a qualidade do mocotó servido no abecê paulista, mas se é capaz um grupo de amigos por tanto tempo e ainda ficar na memória é porque é dos bons. É um prato brasileiro, espalhado por todo o território nacional, consumido mesmo nas regiões mais quentes. Mas existem diferenças regionais.
A base é igual, obviamente, com o mocotó cozido; mas há quem misture com paio, feijão branco e outros ingredientes que estão além dos temperos. No sul do país é um prato mais recheado, incluindo tripa e coalheira (um dos estômagos) cortada em tiras. Em Macapá, não leva nada além dos temperinhos, mas tem menos caldo.
Há quem sustente que o mocotó é resultado da sovinice das casas grandes, que só liberavam para as senzalas as partes menos nobres dos animais abatidos, caso da pata bovina, de onde vem a iguaria. Daí o nome, emprestado do quimbundo africano – mukoto. Mas em Portugal há um prato muito parecido, a mão de vaca, onde o mocotó é servido cozido com grão de bico.
Diz a lenda que o mocotó é afrodisíaco e calmante; como é que as duas coisas se juntam eu não sei dizer. Mas há poucas curas mais eficazes para uma ressaca e ainda tem colágeno, que além de grudar os lábios, é uma proteína como poucas para a pele.
Em Brasília há muito mocotó bom. No Caldo do Zé, do Cruzeiro Novo, é servido da maneira tradicional, no Bar do Mocotó, 702 norte, é a especialidade da casa, e no Cantinho da Tia Rô, da Quituart, no Lago Norte, fica impossível não repetir.
Há segredos numa panela de mocotó. Não vou dar o endereço, mas depois de cansativa jornada de trabalho na emissora de rádio, a turma ia relaxar diante de algumas cervejas e cumbucas de mocotó, sempre no mesmo lugar. Era imbatível; não havia mocotó igual em lugar nenhum, sempre delicioso.
Mas certo dia o pessoal foi surpreendido com um sabor diferente. Não estava ruim, longe disso, mas era muito inferior ao que estávamos acostumados. Um mocotó ordinário. Acho que foi Adriano Gaieski, que já não está entre nós para confirmar, quem reclamou com o garçom-chapa. “O mocotó está uma porcaria”, disse com a sutileza que trouxe dos pampas.
Meio sem jeito, o rapaz chegou perto da mesa, já se desculpando. “A culpa é do pessoal da vigilância sanitária, que esteve aqui hoje e obrigou a lavar todas as panelas”. E assim ficamos sabendo que nosso mocotó de cada dia era só acrescentado ao que havia sobrado do dia anterior na panela.
Publicado no Correio Braziliense em 27 de abril de 2018