Vida de pai de santo em Brasília nunca foi fácil. Tudo por culpa de Lúcio Costa, que cismou de fazer um projeto para evitar cruzamentos e criou soluções como as tesourinhas e retornos, avacalhando o ofício por falta de encruzilhada.
Desde os primeiros dias da nova capital, os despachos tinham que ser improvisados em caminhos de terra cruzados – mesmo que fossem apenas trilhas de pedestres –, normalmente nas então cidades satélites, ou na capoeira mesmo.
O primeiro terreiro da nova capital foi instalado em plena Asa Norte, onde permanece, aliás, na altura da 911. Mas o mais peculiar, já na década de 1970, emitia o som dos tambores e o alarido dos erês do subsolo de uma loja de entrequadra, na Asa Sul, onde, apesar do espaço exíguo, havia sacrifício de galinhas e coelhos. E era muito esquisito ver cavalo incorporado subindo e descendo escada.
Hoje seria impensável. Com a patrulha da chatura institucionalizada, logo haveria abaixo-assinado, protesto e polícia na porta.
No passado era bem difícil pisar num despacho; afinal, em quase todo cruzamento tinha um balão. E além do mais era difícil andar a pé pelo Plano Piloto, já que não havia calçadas e era grande a quantidade de buracos furados sabe-se lá por quê e que ganhavam a camuflagem do mato que crescia solto.
Hoje são mais de 300 templos, com babalorixás respeitados, filhos de santo dedicados, cultos e consultas abertas. Há até uma praça dedicada a orixás, com imagens que vez ou outra são vítimas da intolerância. Foi uma conquista por ocupação, já que está instalada no mesmo lugar em que eram lançadas as oferendas pioneiras, aproveitando a proximidade com o lago, ao lado da Ponte das Garças.
Outro dia, recém-chegado à cidade, o rapaz se aproximou da nossa mesa no bar, atraído pela rodada gratuita e comunitária da garrafa de rolha colocada sobre a mesa, trazida do vale de Orizona, Goiás. Era uma mesa de ateus e católicos pouco praticantes, mas a conversa girava em torno do candomblé e seus mistérios.
Daí o rapaz se sentiu confortável para perguntar se alguém conhecia o que, priscas eras, se costumava chamar de centro (com C maiúsculo, aliás). “Vocês conhecem algum tempo de matriz africana aqui? Ando precisando de um banho de sete ervas”.
A terminologia politicamente correta não tem adeptos nos botecos de raiz. Os frequentadores preferem encarar a língua portuguesa com o rigor do cais do porto, das zbm; ou seja, sem muitos rodeios, como os dicionários ensinam. O pessoal foi educado, mas não tinha babalorixá ou ialorixá para indicar, quando um gaiato começou a batucar na mesa.
“Aqui não se brinca de roda de copo e nem de chamar exu”, interrompeu o dono do estabelecimento, preocupado com aquele ponto mal executado. “Do jeito que você está tocando daqui a pouco desce o exu caveira. E se explicou: “Eu já vi um exu coroado descer e ele não combina com cachaça. É briga certa”.
E arrematou, batendo na madeira do balcão: “Mangalô, pé de pato, três vezes”.
Publicado no Correio Braziliense em 13 de fevereiro de 2022