canibal

Crise de identidade

Publicado em Crônica

Agora todo dia é dia de malhar o Judas. Antigamente confinada ao sábado de Aleluia, a tradição católica de descer a lenha e queimar o tal Iscariotis – e que, aliás, vai contra toda a concepção cristã de perdão amplo e irrestrito – agora acontece a cada minuto nas chamadas redes sociais, que revelam sua face menos sociável e mais horrenda em comentários baseados na ignorância dos instintos primitivos.

A mais recente vítima – pelo menos até 15 minutos atrás – é o Ministro da Educação Ricardo Vélez Rodrígues. A nação brasileira, que não gosta de olhar no espelho e nem que mostrem sua fotografia, ficou revoltada com a afirmação de que parecemos um bando de canibais quando viajamos para o exterior. “Rouba coisas dos hotéis, rouba o assento salva-vidas do avião”, deu exemplos.

Podia ir além: o brasileiro furta copinhos dos restaurantes, faz xixi na calçada, fala alto, tenta furar fila, é grosseiro com garçons, joga bituca de cigarro na rua e até improvisa coros gritando cores para a genitália feminina – é inesquecível a palhaçada na Copa da Rússia, gravada em vídeo, para mostrar que o brasileiro não respeita nada nem ninguém? “B#°*t@ rosa”, gritavam os canibais.

(Quem me acompanha neste periódico já sabe que eu não gosto de palavrões na hora errada; portanto, cabe o velho recurso das tirinhas em quadrinhos de usar elementos gráficos no lugar do baixo calão.)

O brasileiro no exterior mostra problemas sérios de identidade. Adora andar pelas ruas limpas, elogia a organização, não reclama de esperar sua vez – mesmo nas intermináveis filas dos parques e atrações mais concorridas – e nem acha ruim quando abordado por uma autoridade. Mas só quando está isolado ou em grupos pequenos, o que, como lembrou o ministro, não o impede de tentar carregar a toalha do hotel, a tacinha de licor do restaurante, qualquer coisa para ele mostrar toda a sua malandragem.

Mas em eventos maiores, quando se juntam, brasileiros muitas vezes se comportam como predadores. Viram hordas bárbaras. E não apenas nas Copas do Mundo de futebol, esporte que costuma provocar reações inexplicáveis – até violentas – no ser humano, mesmo no mais polido. Qualquer aglomeração é capaz de agitar as massas verde-amarelas, até fila para ver o Rei Leão, cheia de crianças.

A coisa só não piora porque, para a maioria dos países, não dá para viajar com o carro tunado, com aqueles alto-falantes superpotentes vibrando e avisando que encontrou a Jenifer no Tinder. É a hora em que o Itamaraty devia pedir desculpas aos paraguaios.

Mas o ministro não é o único Judas. Outro dia a cantora Cláudia Leitte, que trocou o Brasil por Los Angeles, desancou o País e levou pau de todo lado; o mesmo aconteceu com o ator Pedro Cardoso que, de Portugal, publicou vídeos reclamando do comportamento dos brasileiros e até com Gisele Bündchen que, quando dá palpites ecológicos, apanha como boi ladrão.

Em casa os brasileiros são considerados educados, ao contrário dos franceses, campeões absolutos do mau humor, seguidos de russos e britânicos. Custava ser sempre assim?

Publicado no Correio Braziliense, em 17 de fevereiro de 2019