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Como salvar o saci

Publicado em Crônica

Uma boneca de pano que fala pelos cotovelos, um sabugo de milho com título nobiliárquico, um leitão casadoiro, saci de carapuça vermelha e peixes que falam são alguns dos personagens que habitam o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Estes seres, e mais alguns humanos, foram a porta de entrada de milhares – milhões? – de brasileiros no mundo dos livros, a partir da pena de Monteiro Lobato.

Pois os personagens e as histórias fantásticas, que misturavam o folclore brasileiro com mitos gregos e usavam personagens de contos de fada europeus em aventuras bem brasileiras, agora são de domínio público. E isso significa que todo mundo pode mexer à vontade com a turma do sítio; para o bem e para o mal. Que perigo.

Novos livros podem ser escritos, inclusive alguns ainda mais delirantes que os originais, como o que retrataria Lobato como um umbandista; o sitio, na verdade, era um terreiro de macumba habitado por uma mãe de santo (Dona Benta), dois pretos velhos (Tia Anastácia e Tio Barnabé), erês (Pedrinho e Narizinho), entidades como o saci e até bonecos de vodu (Emília e o Visconde de Sabugosa). Esse enredo, se fosse obra de ficção poderia até ser cômico, mas é só uma demonstração da intolerância que está publicada nas redes sociais.

A ameaça é que, além dessas demonstrações de absurdo, qualquer zé-ruela pode meter seu bedelho na obra de Lobato. Há poucos anos o Conselho Nacional de Educação recomendou que o livro Caçadas de Pedrinho não fosse mais distribuído nas escolas públicas. A alegação é que haveria “elementos racistas” no livro escrito em 1933. É até estranho que ninguém tenha reclamado que as crianças encontraram um rinoceronte na mata brasileira – e o Quindim ainda falava!

Não custa lembrar que Machado de Assis – em domínio público a mais tempo – deve ter revirado na tumba quando seus personagens foram colocados ao lado de androides e alienígenas no livro Dom Casmurro e os Discos Voadores, quando Bentinho se esquece dos encantos de Capitu e se envolve numa guerra intergaláctica entre civilizações de répteis contra seres aquáticos.

Outra vítima foi Bernardo Guimarães, que morreu pobre e certamente não desperdiçaria tostões para comprar o livro A Escrava Isaura e o Vampiro, ainda mais se soubesse que participam da trama o ex-presidente Lula e o estilista Clodovil. Na mesma linha ainda tem Senhora, a Bruxa, que mistura o clássico de José de Alencar com malignas feiticeiras celtas – as irmãs Blair.

Ninguém deve cercear a imaginação dos outros. O mundo de Lobato é fantástico, já foi adaptado para o cinema, para a televisão, histórias em quadrinho e programas de rádio. Merece e precisa ser sempre lembrado. Mas sempre respeitando os parâmetros do criador, com alguma reverência até.

Grandes editoras já começam a mostrar planos; o pessoal politicamente correto prepara a pena para conter os ímpetos vocais de Emília, a caracterização do Tio Barnabé como um pai-joão e um ou outro exagero do próprio narrador. Não sei se vão tratar o saci como deficiente, mas ele certamente não vai fumar cachimbo.

Publicado no Correio Braziliense, em 10 de fevereiro de 2018