De longe é bonito de ver; de perto, um inferno. O começo da seca em Brasília traz, em contraste com o céu anil, redemoinhos que jogam poeira vermelha e folhas esturricadas para o alto, nas áreas mais abertas da cidade. São os lacerdinhas, apelido para lembrar Carlos Lacerda, político carioca de sulfurosos discursos, que causavam reboliço na República.
Chamado de O Corvo, Lacerda foi um dos maiores adversários da construção de Brasília e tinha como passatempo derrubar presidentes. Ou seja: redemoinho é até pouco para o furacão Lacerda. Em outras regiões, lacerdinha é o apelido de um mosquitinho que adora voar em volta do olho da gente, perturbando; é outra história, mas o Lacerda é o mesmo.
Domingo passado vi o primeiro lacerdinha do ano. Subiu perto da moça que estava com roupa de ir à missa, mas caminhando em direção ao ponto de ônibus, carregando apenas uma pequena bolsa e, claro, falando ao celular. Ela não viu nada.
Quando deu por si, tentava segurar a saia que subia e descia, punha as mãos para buscar uma inútil proteção para o cabelo, cuspia para evitar que a poeira entrasse pela boca e corria. Mas parecia que o lacerdinha era ensinado: foi atrás da moça, que não se desvencilhava do fenômeno e tentava sobreviver – não seria surpresa se daquele tordelinho saísse um saci de carapuça vermelha e pitando cachimbo.
A moça, coitada, deu meia volta; deve ter ido tomar outro banho porque, com certeza, não ia perder o domingão.
Já não temos tantos descampados; também os gramados – cinzentos de sede –contribuem para que não haja mais tantos lacerdinhas. Mas ainda hoje, todo início de tarde, basta olhar um pouco para o alto que a poeira vai aparecer. De longe, são bonitos de ver.
Foto: José Cruz/ Agência Brasil