Não dá para entender essa polêmica toda criada por um funcionário do governo federal que afirmou que o rock leva ao satanismo. Desde que Raul Seixas cantou que o “diabo é o pai do rock” a gente sabe disso.
Aliás, antes; pelo menos desde que Robert Johnson, um dos pioneiros do blues (que daria origem ao rock) cantou: “Eu e o capeta andávamos lado a lado, eu vou bater na minha mulher até ficar satisfeito” (Me and the Devil’s Blues).
E isso foi no dia 20 de junho de 1937. De lá para cá, a influência do tinhoso cresceu ao ponto de exorcistas de terno e gravata ou batina serem convocados para tentar acabar com o rock. Pelo jeito falharam. E sempre que um garoto pira, botam culpa na música.
O fato é que o cão é um personagem presente em muitas canções. Algumas vezes nem é preciso invocar o nome: “Prazer em conhecer, espero que saiba meu nome/ O que te confunde é a natureza do meu jogo” (Sympathy for the Devil, Rolling Stones).
Em outras, apresenta-se o cartão de visitas: “Olhe em meus olhos, você verá quem sou/ Meu nome é Lúcifer, segure a minha mão” (N.I.B., Black Sabbath).
Em muitas ocasiões a ligação é direta: “Ei, Satã, já paguei minhas dívidas/ Tocando numa banda de rock” (Highway to Hell, AC/DC). Ou: “Não quero me libertar, eu quero ser seu escravo/ Eu nasci para viver rock, luxúria e diabo” (Os Replicantes).
Não há a menor dúvida, portanto, que o anjo caído desceu à Terra, ocupou os corpos de Chuck Berry, Elvis e mais meia dúzia para inventar o ritmo infernal. Não se sabe porque ele esperou tanto, desde a aurora dos tempos. Talvez porque estivesse ocupado atentando os compositores de ópera para buscar as almas dos bacanas de golas e punhos de renda.
O funcionário gosta de ópera. Deve saber que Gounod contou a história de Fausto, que invocou o poder infernal de Mephistopheles para ganhar juventude e seduzir a tolinha Marguerite; a história, baseada no livro de Goethe, também serviu de inspiração para Berlioz compor A Danação de Fausto. Mas o beiçudo também perturbou Arrigo Boito para compor Mefistofele.
Há outros personagens demoníacos no mundo operístico, como a feiticeira Alcina, de Händel, as fúrias e capetas de Orfeu e Eurídice, de Gluck, e até mesmo os gigantes Fafner e Fasolt em O Anel dos Nibelungos, de Wagner.
O belzebu aparece inteiro em Robert le Diable, de Meyerbeer. O personagem-título é filho do chavelhudo – na ópera, Bertram – com uma mortal, e resiste à luxúria até que chega ao limiar de assinar um pacto.
A culpa de tudo parece ser mesmo do trítono, dissonância que teria sido proibida pela igreja católica porque, contam, foi criada pelo demo em pessoa. Trata-se de um intervalo capaz de dividir uma oitava – que tem sete notas – em duas partes exatamente iguais e que causaria distúrbios musicais.
Por isso dizem que cabeça vazia é oficina o diabo. E parece ter muita cabeça vazia no governo federal.
Publicado no Correio Braziliense em 8 de dezembro de 2019