O colégio era católico e o monsenhor parecia se regozijar quando ameaçava os alunos – todos adolescentes – com sua descrição do Inferno. Iríamos todos para lá se a algazarra não cessasse, vaticinava.
Tições ardendo com fogo eterno, seres com patas de bode espetando os pecadores, equipamentos de tortura, gritos de horror e corpos dilacerados. A riqueza de detalhes fazia com que acreditássemos que ele já havia estado por lá.
E funcionava; pelo menos até a próxima confusão.
O Inferno é, pelo menos desde que Plutão guardava suas chaves, um freio na ganância e na crueldade que o homem traz do berço. Quem não pagar em vida, vai penar pela vida eterna. “Deixai toda a esperança, vós que entrais” – palavras de Dante Alighieri. Ou não.
O Vaticano declarou que não foi bem assim, mas também não desmentiu. O fato é que o Papa Francisco esteve com Eugenio Scalfari, fundador do jornal La Repubblica. E o vetusto senhor de 93 anos ouviu, do representante do céu na Terra, que não existe Inferno.
“O Inferno não existe, o desaparecimento das almas dos pecadores existe”, teria dito o Papa. É bom lembrar que Francisco já havia dito que não há como condenar os ateus: “Deus perdoa quem segue a própria consciência”, falou.
Até agora os pecadores tinham horror à descrição de Túndalo, irlandês que assegurou ter estado no reino do tinhoso por dois dias, ou da freira Josefa Menendez que dizia ter recebido de Deus a incumbência de descrever o fumegante lugar.
A soror descreveu imensos corredores incendiados e sombrios, onde almas vivem em sofrimento eterno; Túndalo viu caldeirões imensos onde o pecador é cozido e retalhado, para ser novamente colado, voltar à panela e virar picadinho, num ciclo eterno de cozimento.
Mas nenhuma visão do Inferno é mais aterradora do que a do monge alemão Wetti, com vermes gigantescos em cenários lúgubres e penas de conotação sexual. Segundo ele, quem mais sofre – parece que até hoje – é o imperador Carlos Magno, amarrado nu, com um animal rasgando-lhe a genitália.
Estranho: o monarca é considerado beato da igreja católica, inclusive com festa em sua homenagem nas paróquias de Aachen, Alemanha. E foi o papa João Paulo II quem o chamou de “pai da Europa”. Alguém se enganou no cartório celeste.
Mas isso é passado. Agora vamos ter que resolver as coisas por aqui mesmo, na Lei dos homens. Nem adianta desejar que o Maluf vá queimar no quinto dos infernos, porque não tem lenha; ou que o Picciani vá ao diabo (aliás, se não existe Inferno também não existe o cão? Ou é um sem teto).
Para alguns ministros de toga não parece difícil assumir esse papel de Deus. Mas acho melhor trocar a cor da capa; pode ser que alguém confunda as coisas.
Aliás, para quem tinha dúvida que é mesmo o fim da picada, aparece agora uma quadrilha de padres, chefiada por um bispo, que desvia o dinheiro destinado aos pobres. Eles já deviam ter alguma informação privilegiada de que o Inferno não existe.
Publicado no Correio Braziliense em 8 de abril de 2018