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A normalista e o sorvete

Publicado em Crônica

As olheiras enormes, cinzentas e profundas evidenciavam o cansaço da moça. A colega que iria rendê-la ficou doente e lá estava ela dobrando o serviço; e fazia de tudo. Talvez pelo esgotamento, não parava de falar. Estava diante de um cliente que certamente mal conhecia, mas despejava lamúrias e inconformismo.

– Bom era no tempo da minha avó, quando as mulheres só trabalhavam em casa, não tinham que dar duro na rua também e depois ainda cuidar da família, organizar as coisas, fazer comida para deixar na geladeira, olhar se o menino fez dever de casa…

O senhorzinho que estava sendo atendido ainda tentou argumentar, dizendo que as mulheres lutaram muito para ter direitos iguais e que o trabalho era uma parte importante da vida, aquela conversa comprida de sempre, que irrita quem está atrás querendo só pagar a cibalena que comprou – sim, estávamos numa pequena farmácia no Gama.

Sem ter muito o que fazer além de esperar, comecei a viajar no diálogo dos dois quando o telefone pia. E era uma mensagem que parecia querer se intrometer na conversa, já que trazia um contrato para a contratação de professoras em 1923.

Era um documento ainda em branco, com espaço para nome e detalhes pessoais a preencher, mas com revelações importantes que mostram como era a vida das mulheres naquele tempo sonhado pela balconista estressada. Ali estavam listadas exigências para que a candidata ao cargo de professora fosse aceita.

Hoje seria um escândalo; ainda mais que as mulheres do Congresso protestam até pela liberdade de usar decote (no que estão certíssimas, aliás). Mas em 1923 as mulheres nem podiam votar – ainda teriam que esperar nove anos depois. Para assinar um contrato válido por oito meses e receber um salário mensal de $ 75 mil reis era preciso concordar com os seguintes termos:

  1. Não se casar. Este contrato ficará automaticamente anulado e sem efeito se a professora se casa.
  2. Não andar na companhia de homens.
  3. Ficar em sua casa entre as 8h da noite e às seis da manhã, a não ser que seja para atender a uma função escolar.
  4. Não passear pelas sorveterias do centro da cidade.
  5. Não abandonar a cidade sob nenhum pretexto, sem permissão do presidente do Conselho de Delegados.
  6. Não fumar cigarros. Este contrato ficará automaticamente anulado e sem efeito se a professora for encontrada fumando.
  7. Não beber cerveja, vinho ou uísque. Este contrato ficará automaticamente anulado e sem efeito se a professora for encontrada bebendo cerveja, vinho ou uísque.
  8. Não viajar em carruagem ou automóvel com qualquer homem exceto seu irmão ou seu pai.

 

Essas moças – as normalistas –, com seus vestidinhos azuis em suspensórios e camisas brancas, aturdiam os homens de antanho. Culpa em parte do samba de 1949, de Benedito Lacerda e David Nasser, interpretado por Miltinho e Nelson Gonçalves. Hoje não se vê mais normalistas uniformizadas, mas os uniformes são vendidos em sex shops, vejam só.

Agora, 98 anos depois, essas oito exigências não são feitas nem mesmo pelo Vaticano quando busca informações para canonizar alguém. Só não estava claro se o sorvete estava liberado ou não.

NÃO publicado no Correio Braziliense em 31 de outubro de 2021