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A música e o divino

Publicado em Crônica

A arte nasce de cérebro e coração, navega entre a ideia e a emoção; mas nem Freud conseguiu explicar a manifestação, a centelha, a tal inspiração que dá início ao processo criativo. ‘De onde você tirou isso?’, costumam ouvir os artistas. E por mais que expliquem, a gente só tem uma certeza: eles também não sabem.

O samba tentou traduzir, com palavras de Paulo César Pinheiro, como se dá o nascimento. “E o poeta se deixa levar por essa magia, e o verso vem vindo e vem vindo uma melodia”. E chega no divino: “É, faz pensar, que existe uma força maior que nos guia. Está no ar”.

A se acreditar nos antigos gregos, seriam faíscas produzidas por nove musas. Assim, Euterpe surgia para os músicos, Erato para os poetas, Terpsícore para os bailarinos e por aí adiante. Vindo dos céus ou do Olimpo, o mistério da inspiração persiste.

O radialista Ruy Godinho investiga a produção da música popular do país há algum tempo. Já publicou três livros – um quarto está no prelo e o quinto, dedicado aos compositores mineiros, em preparação – e fez um programa de rádio contando o processo da criação das canções. Então, Foi assim? é o título do projeto.

Com entrevistas e pesquisas, ele descobriu um monte de curiosidades sobre as 226 canções que estão nos primeiros volumes da série. Também escrutinou as motivações dos compositores para encontrar os temas.

Ele conta, por exemplo, que o samba Sonho Meu, escrito por Délcio Carvalho e D. Ivone Lara, não foi feito para algum amor distante, como se imaginava, mas para os exilados, nos últimos dias de regime militar. E que o tema veio a Carvalho durante uma viagem de ônibus. Mas Godinho não resolveu a questão da inspiração.

Lançado há poucos dias, o disco Budapest Concert, de Keith Jarrett, oferece pistas mais firmas para buscar uma resposta. O pianista norte-americano começou a se destacar com Charles Lloyd e, depois, Miles Davis, mas queria a liberdade absoluta que só o solo oferece. E entregou ao mundo um dos discos fundamentais do jazz: The Köln Concert.

Jarrett é um improvisador; não se repete, busca a música em permanente evolução e despreza a pauta que pereniza a composição. Não toca mais. Dois derrames lhe paralisaram a mão esquerda.

O concerto que está sendo lançado foi gravado na terra natal dos avós dele, o que oferece uma carga adicional de emoção. Há 1h 27min de música, dividida em 12 partes. Apenas uma delas – a 12ª – teve alguma limitação; foi desenvolvida sobre a base de 12 compassos do blues tradicional.

As demais são temas livres, criados naquele momento, diante de centenas de pessoas, numa manifestação viva da influência de Euterpe, a musa dos músicos. Duas canções formais fecham a gravação, mas certamente não se ouvirá It’s a Lonesome Old Town ou Answer Me da forma que ele apresenta em lugar nenhum.

O improviso é a manifestação da arte em estado bruto, sem filtros e polimentos. É quase como ouvir o canto divino.

Publicado no Correio Braziliense em 22 de novembro de 2020