O tempo é um dos deuses mais caprichosos. Forte, implacável, imparável. Os gregos diziam que Cronos, temendo a profecia de que perderia o poder, engoliu os próprios filhos; apenas Zeus escapou, graças a uma esperteza da mãe. Anos depois, uma poção fez com que Cronos vomitasse os filhos, que se tornaram imortais.
Desde os antigos romanos alguém determinou que se devia medir a vida por anos – e não por horas, dias, décadas, qualquer uma das métricas que, se não limitam, marcam a passagem do tempo. Desde a pré-história os humanos têm necessidade de contar o tempo, até por uma questão de sobrevivência; e tempo foi se traduzindo em sabedoria.
De uns anos para cá o tempo vem perdendo sua majestade. A juventude, antes sinônimo de verdor, inexperiência, virou ativo, acusando a idade em estorvo, quase decrepitude. O dramaturgo Nelson Rodrigues, com a veemência habitual, foi perguntado sobre o conselho que daria aos jovens. “Envelheçam”, respondeu.
Não foi ouvido. Depois da Segunda Grande Guerra apareceram os beatniks, sujeitos inconformistas, antimaterialistas, livres, que pregavam a libertação e o confronto às ideias dos mais velhos – a contracultura. Foi o início do levante dos jovens, do desprezo ao ordenamento determinados pelos mais velhos, principalmente nos Estados Unidos, onde os velhos mandavam jovens para morrer em guerras alheias, do outro lado do mundo.
“Não confie em ninguém com mais de 30 anos”, cantava Marcos Valle, em 1971, aos 28 (!) anos. Bem diferente da relação de Aldir Blanc, que ao completar 50 anos tentou resgatar o valor dos anos na canção Resposta ao Tempo, com Cristovão Bastos: “E o tempo se rói com inveja de mim/ Me vigia querendo aprender/ Como eu morro de amor/ Pra tentar reviver”.
A relação humana com o tempo é sempre desproporcional – ou quase, descontando-se quem escolhe abreviar a existência, uma forma radical de domar esse irredutível deus, oferecendo a própria cabeça. Tudo isso vem à mente nesses dias, quando meu pai completa 90 anos de idade. Para usar outras medidas, são nove décadas, 32.872 dias, já incluídos os anos bissextos, observando o mundo, ensinando que ninguém perde por ser inflexível em seus princípios.
Impossível decidir qual foi o melhor ensinamento que ele traz; talvez uma inarredável honestidade em todos os aspectos, que chegou mais de uma vez a afastá-lo dos paisanos, por não entender como funciona o tal ‘jeitinho’. Talvez a sinceridade em estado bruto com que ele sempre tratou tudo na vida. Talvez a sabedoria das palavras certas nos momentos precisos.
Hoje ele vem reclamando que algumas palavras vêm sumindo da memória. Brancos episódicos, mas nada que inviabilize uma boa conversa ou a solução das palavras cruzadas. O mundo continua girando diante dos olhos, mesmo durante essa pandemia que nos afasta, acompanhando o tempo, esse “compositor de destinos, tambor de todos os ritmos” (nas palavras de Caetano Veloso em Oração ao Tempo).
Mas a sabedoria – que não depende de palavras – continua intacta. Segue a lição de Confúcio: “qual seria sua idade se você não soubesse quantos anos você tem?”
Publicado no Correio Braziliense em 17 de janeiro de 2020