Os sete pecados do haver

Publicado em Geral, Pecados da língua

 

Há pecados e pecados. Existem os pecadilhos veniais. Leves, os erros não incomodam a Deus. Quando o Todo-Poderoso vê criaturas furando filas, fingindo tristeza em velório ou trabalhando no domingo, sorri compreensivo e as deixa pra lá. Elas nem precisam pedir perdão. Tendo mais o que fazer, o dono do céu, da Terra e do universo as desculpa antecipadamente.
  No outro extremo, estão os atos que ferem ao Senhor, a você e ao próximo. São tão pesados que não têm clemência. O papa Gregório Magno, lá no século VI, os especificou. São os sete pecados capitais. O adjetivo não deixa dúvida. Os escorregões são graves. Ei-los: gula, avareza, inveja, ira, soberba, luxúria e preguiça.
  Nem todos, porém, se curvam ao clamor da igreja. Há os que têm o olho maior que a barriga, os Tios Patinhas da vida, os professores de Deus, os Macunaímas soltos mundo afora. A tentação é tal que ultrapassa o espaço humano. Chega ao da língua. Vale o exemplo do haver. O verbo pagou pra ver. Cometeu os sete pecados. 
 
Passo a passo
  Gula? Eis o primeiro desafio. Como traduzir na língua o comer além do necessário a toda hora? A resposta: multiplicando regências, funções e significados. Fiquemos com os últimos. O dissílabo pode ser:
  1. substantivo. Aí quer dizer bem, riqueza: Na partilha, perdeu metade dos haveres.
  2. verbo. Ops! O dicionário registra quase 20 acepções. Entre elas, ter, possuir (hei um emprego); obter, conseguir (depois de muita luta, houve o que buscava); considerar, julgar (houveram que era abuso aceitar as exigências do governador); existir (há 20 casas na rua); fazer (havia meses que não falávamos); entender-se, arranjar-se (não sabia que o filho se havia com traficantes). Etc. e tal.
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Avareza? Como chegar lá? O haver inspirou-se em palavras e expressões do povo sabido. Entre elas, mesquinho, sovina, canguinha, muquirana, morrinha, pão-duro, mão-fechada, mão de vaca, sapo morreu na unha, não dá adeus pra não abrir a mão, não come ovo pra não jogar a casca fora, nada com o Sonrisal na mão, e o efervescente continua seco.
  Eureca! Em vez de flexionar-se nas três pessoas (eu, nós; tu, vós; ele, eles), o verbo estacionou em uma. Impessoal, só se conjuga na 3ª pessoa do singular. Ele pratica esse pecado em três ocasiões:
  1. na acepção de ocorrer: Houve mortes no Complexo do Alemão.
2. no sentido de existir: Há três casas na rua.
3. Na contagem de tempo passado: Moro em Brasília há dois anos.
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  Inveja? Desde que nasceu, o haver não tirava os olhos da expressão haja vista (= veja-se). Também ele queria porque queria andar em duplinha. Como? Tornou-se auxiliar. Colado ao particípio de outro verbo, forma tempo composto: que eu haja visto, ele haja visto, nós hajamos visto, eles hajam visto.
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  Ira? Ops! É reação de Deus. Os homens sentem ódio, raiva. O haver também. Nada lhe desperta os instintos mais bárbaros do que contrariá-lo. Atrevidos o tornam pessoal quando é impessoal. Em vez de “houve distúrbios”, dizem “houveram distúrbios”. Em lugar de “havia casas”, preferem “haviam casas”. Pagam caro. A fúria do verbo desmoraliza reputações e rouba pontos no vestibular, no concurso, no emprego. Valha-nos, Deus!
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  Soberba? Ah! A palavra soa como música. Sem humildade, o dissílabo se sente autossuficiente. Na indicação de tempo, basta o há. Dizer “há dois anos atrás”? Cruz-credo! O atrás sobra. Explica-se. O há indica passado. O atrás também. Xô, pleonasmo!
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  Luxúria? Louco pelos prazeres da carne, o haver é do tempo em que não havia camisinha. Resultado: teve filhos. Um deles: reaver. O garoto quer dizer haver de novo (recuperar). Muitos lhe confundem a paternidade. Bobeiam. Ele só se conjuga nas formas em que aparece o v do paizão: reouve, reaveria, reaverão.
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  Preguiça? “Ora, se Deus descansou no sétimo dia”, pensa ele, ” por que eu não haveria de fazê-lo? O verbo desconfia de discriminação. O descanso de Deus é repouso. O dele, preguiça.