Os sete pecados do artigo

Publicado em Geral, Pecados da língua

 
 
Hidra era uma cobra de arrepiar os cabelos. Tinha corpo de dragão e seis pescoços que sustentavam sete cabeças. A principal ficava no meio. A serpente espalhava veneno sobre o corpo todinho. Por isso ninguém podia chegar perto dela. Além do risco, o cheiro era insuportável.
  Deuses, homens, mulheres e crianças morriam de medo do monstro. Muitos tentaram matá-lo. Mas não conseguiram. Quando lhe cortavam uma cabeça, ela renascia com força total. E soltava um odor… Pior que pum de 20 meninos juntos. Todos saíam de perto.
  E daí? Chamaram Hércules para acabar com a criatura. Ele pediu a ajuda de um amigo. Os dois fizeram um trato. Hércules decepava uma cabeça da fera. Imediatamente o companheiro queimava o pescoço dela com uma tocha. A cabeça não renascia. Assim foi seis vezes. Aí, Hércules cortou a cabeça principal. A Hidra morreu.
  Daí nasceu a a expressão cabeça da hidra. Ela tem um significado muito especial. Quer dizer fonte sem fim de coisas ruins. A gente corrige uma falha. Pinta outra. E outra. E outra. Ufa! Na língua ocorre o mesmo. Vale o exemplo do artigo. Gramáticas e manuais alertam para as trapaças do pequenino. Todos entendem. Prometem seguir a orientação dos mestres. Mas na hora de aplicar… Os vícios voltam firmes e fortes. É a cabeça do monstro grego. Valha-nos, Hércules. 
 
O indefinido
  As palavras, como os remédios, podem matar. O artigo indefinido, medicamento de tarja preta, causa estragos. Torna o substantivo vago, impreciso, molengão. Em 99% das frases, é gordura pura. Corte-o. Assim: Na posse, os convidados usaram (uma) roupa clara. As mulheres esperam viver (uma) nova era no Brasil. Haverá (umas) reconduções no primeiro escalão do governo.
 
Outro
  Ops! O pronome outro tem aversão à obesidade. Lipoaspiração é com ele mesmo. Sabe qual é a primeira vítima do motorzinho? O artigo indefinido. Escrever ou falar “um outro”? Valha-nos, Senhor. Xô! Melhor mandá-lo plantar batata onde judas perdeu as botas: Comprou (um) outro vestido pra curtir o réveillon. Espera receber o ano-novo com (uma) outra companhia. Vendeu o champanhe para (um) outro freguês.
 
O definido
  Ser claro é obrigação de quem escreve. O artigo definido se presta a confusão de significados. Ao dizer “os estudantes fizeram greve”, engloba-se a totalidade da moçada. Se não é a totalidade, o pequenino não tem vez: Estudantes fazem greve. 
 
Todos os
  Ora, se o artigo engloba, o todos sobra em muitas situações. Corte-o sem pena: Vou à missa todos os domingos. (Vou à missa aos domingos.) Todos os ministros que saem partem com saudade do poder. (Os ministros que saem partem com saudade do poder.) Todas as pessoas que se expõem ao sol correm risco de contrair câncer de pele. (As pessoas que se expõem ao sol correm risco de contrair câncer de pele.)
 
  Ambos
  Ambos joga no time das polarizações. Com ele é oito ou 80. Ou anda sozinho, ou acompanhado. Na primeira equipe, não oferece problema. Veja: Ambos saíram. Gosto de ambos. Trabalho com ambos sem problemas.
  Na segunda equipe é que a porca torce o rabo. Seguido de substantivo, o dissílabo exige — exige mesmo — o artigo. Assim: Ambos os filhos visitaram os pais. Ambas as provas do Enem foram alvo de críticas. Ambos os países sobressaíram no debate.
 
  Chamar a atenção
  Olho vivo! Chame a atenção de alguém. Assim, com artigo: O maestro chamou a atenção dos músicos. Chame a atenção dos presentes. Não gosto que me chamem a atenção.
 
  Cujo
  O pronome relativo cujo sofre de grave intolerância. Não suporta o artigo. O bom senso manda respeitar-lhe as idiossincrasias: Lula, cuja candidata foi eleita, deixou o poder no sábado. Paulo Coelho, cujos livros fazem sucesso mundo afora, mora em Paris. O funcionário cujo salário é mais curto que o mês vai à luta.