Os sete pecados da reforma ortográfica

Publicado em Geral, Pecados da língua

 

Inveja mata? Mata. Mas também cria. O invejoso tem manhas. Tenta destruir o invejado. Se fracassa, não desiste. Esforça-se para superar o objeto do desejo. Impossível? Parte pra outra. Luta para igualar-se a ele. Vale o exemplo das sete maravilhas do mundo. Os antigos fizeram uma lista de tirar o fôlego. Os Jardins Suspensos da Babilônia, as Pirâmides de Gizé, a Estátua de Zeus, o Templo de Ártemis, o Mausoléu de Halicarnasso, o Colosso de Rodes e o Farol de Alexandria extasiam os filhos de Deus por séculos e séculos.

Os homens contemporâneos não se conformavam diante de tantas loas e tantos suspiros. Decidiram quebrar o monopólio dos antepassados. Como? A New Open World Foundation achou a resposta. Lançou na internet a campanha As sete maravilhas do mundo moderno. Bombou. Mais de 100 milhões de pessoas votaram. Eis o resultado, anunciado há três anos em data cabalística – 07/07/07: Muralha da China, Petra, Cristo Redentor, Machu Picchu, Chichén Itzá, Coliseu, Taj Mahal.

Alguns adoraram a escolha. Outros a detestaram. O mesmo ocorreu com a reforma ortográfica. As mudanças na grafia das palavras despertaram paixões e iras. Sobraram esperneios. Houve até quem propusesse campanha pra boicotar a novidade. Não adiantou. Jornais, revistas, dicionários, livros didáticos adotaram-na. Por ora convivem as duas grafias. Mas em 1º de janeiro de 2013 só a jovem terá vez. A sabedoria aconselha acolhê-la. Sete pecados devem ser evitados. Quais?

Grafia

Olho vivo! A reforma é ortográfica. Só altera a grafia das palavras. Em bom português: alcança letras, acentos, tremas e hifens. Pronúncia, crases, concordâncias, regências continuam como dantes no quartel de Abrantes.

Pronúncia

O trema caiu. Mas o som do u se mantém. Frequência, tranquilo, cinquenta, linguiça & cia. perderam o sinalzinho charmoso. Mas continuam a ser pronunciados como se nada tivesse acontecido.

Alfabeto

Oba! Nosso alfabeto caiu na real. Convidou três excluídos para compor o abecedário. K, y e w, que sempre frequentaram nossa língua em abreviaturas, fórmulas e nomes próprios, se juntaram às velhas 23 letras. Agora, a família tem 26 membros.

Atenção, cristãos novos. Nada muda. As palavras continuam com a mesma cara. Uísque, por exemplo, pediu a nacionalidade portuguesa há muito tempo. Foi atendido. Deixou o w pra lá e virou amigão de Camões, Machado e Pessoa.

Paroxítonas

Você sabia? A reforma só atingiu as paroxítonas. As oxítonas e proparoxítonas escaparam ilesas. Daí a aparente incoerência da mudança. Os ditongos abertos servem de exemplo. Éi e ói perderam o grampinho nas paroxítonas ideia e heroico & cia. Mas o conservam nas oxítonas como papéis e herói. É a tal história: se podemos complicar, pra que simplificar?

Monossílabos

Ops! Generalizar é proibido. Monossílabos tônicos obedecem às regras de acentuação das oxítonas. Mas oxítonas não são. A razão? Para que a fortona caia na última sílaba, a palavra precisa ter pelo menos duas. Elas só têm uma. A pobre solitária recebe classificação à parte.

Acentos diferenciais

“Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”, diz o povo sabido. A reforma lhe dá razão. Cassou os acentos diferenciais de para (do verbo parar), pelo (do gato, do cachorro, de pessoas), pelo (do verbo pelar), polo (as extremidades da Terra), pera (fruta ou barbicha). Reparou? São todas paroxítonas.

Pôr não entrou na faxina. O porquê está na cara. O verbo é monossílabo. Também se manteve fora da limpeza o pôde, pretérito perfeito de poder (ontem ele pôde, hoje não pode). A razão? É a exceção que confirma a regra.

Feiura e saúde

Confundir Germano com gênero humano? Nem pesar. O embaralhar dos miolos cobra preço alto. Rouba pontos na prova, adia promoções, mata amores. Valha-nos, Deus! Dói menos no bolso e na vida aprender que a reforma aliviou o peso do u e do i antecedidos de ditongo. É o caso de feiura, baiuca, Sauipe. O u e o i antecedidos de vogal não têm nada a ver com a história. Continuam como sempre foram: saúde, saída, baú.