Os sete pecados da redação oficial

Publicado em Geral, Pecados da língua


  Que sorte, hein? O gato tem sete vidas. Por quê? Há quem diga que o privilégio se deve às qualidades do bichano. Ele cai de pé. Os músculos, maiores que os dos cães, lhe permitem dar saltos ousados. Exímio equilibrista, o felino se destaca pela agilidade, flexibilidade, destreza, garras afiadas, visão e audição aguçadas. Nem todos concordam com a explicação. Os invejosos atribuem o atributo ao modo de ser egoísta do animal. O peludo cuida muito bem de si. Come e dorme o dia inteiro. Sem medo de ser feliz, sai à noite pra gandaia. Que vidão!
  O gato ganhou a fama e dorme na cama. Nem todos, porém, gozam de tais vantagens. Um dos desprezados da sorte é a redação oficial. Os textos da administração pública são pra lá de inflexíveis. Obedecem a normas tão antigas quanto o rascunho da Bíblia. Os funcionários não têm saída. Precisam aprender as manhas, aplicar as regras e poupar energia. Espernear? Muitos tentam. Cometem sete pecados que os condenam às chamas do inferno. Valham-nos, excelências, senhorias, majestades & cia. burocrática.
  Burocracia
  Você sabia? A palavra burocracia tem dupla nacionalidade. Bureau vem do francês. Na língua de Voltaire e Victor Hugo, quer dizer mesa de trabalho. Krátos nasceu grega. Desde Platão e Aristóteles, significa poderio.
A mocinha fez longa caminhada. No começo da vida, bureau era o tecido grosseiro com que se cobriam as mesas para escrever ou fazer contas. Com o tempo, passou a designar a própria mesa de trabalho. Por fim, chegou ao sentido atual — escritório, repartição.
  Pronomes de tratamento
  Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Vossa Mejestade, Vossa Magnificência & demais salamaleques são formas de tratamento da redação oficial. Elas vieram ao mundo na monarquia portuguesa. À época, era proibido se dirigir ao rei. Quem ousasse fazê-lo perdia a cabeça. O jeito foi buscar subterfúgios. Em vez de se falar ao monarca, falava-se à excelência do monarca, à majestade do monarca, à senhoria do monarca. Viu? O jeitinho brasileiro vem de longe.
  Pessoas
  Os pronomes de tratamento são cheios de manhas. Ora se referem à pessoa com quem se fala. Pedem, então, ajuda ao possessivo vossa: Vossa Excelência, senhor presidente, fez belo discurso. Vossa Senhoria pode atender o telefone? Não sei, reitor, a que documento Vossa Magnificência se reportou.
Outras vezes, referem-se à pessoa de quem se fala. Trocam, então, o vossa pelo sua. Nada mais muda: Sua Excelência fez belo discurso. Sua Senhoria não costuma atender o telefone. Não sei a que documento Sua Magnificência se reportou.
  Concordância
  Ops! Não vale bobear. Os verbos e os pronomes relacionados aos pronomes de tratamento são vaquinhas de presépio. Não arredam pé da 3ª pessoa: Vossa Excelência pode repetir a frase? Majestade, não entendi suas palavras. Vossas Magnificências fizeram suas considerações com elegância.
Viu? Com os pronomes de tratamento, o possessivo vosso não tem vez. Xô!
  Crase
  Olho vivo! Pronomes de tratamento começados por Vossa têm alergia ao artigo. Com eles, a crase não tem vez. Por quê? Crase é o casamento de dois aa. Um deles é o artigo. Sem um par, o outro fica solteirinho da silva: Dirijo-me a Vossa Senhoria. Refiro-me a Sua Excelência. Encaminho a Sua Senhoria a carta solicitada.
  Anexo, em anexo
  Ofícios e memorandos têm uma paixão. Encaminham alguma coisa. Pode ser livros, relatórios e tantos outros documentos que a burocracia adora produzir. Aí, não dá outra. Anexo ou em anexo entram em cartaz. Como usar um ou outro?
  Anexo é adjetivo. Como os irmãozinhos dele, concorda em gênero e número com o nome a que se refere: Anexo, encaminho o documento. Anexos, encaminho os documentos. Anexa, encaminho a carta. Anexas, encaminho as cartas.
  Em anexo bate à porta de outra freguesia. Locução adverbial, joga no time dos inflexíveis. Sem feminino, masculino, singular ou plural, é sempre igual: Em anexo, encaminho os documentos. Em anexo, encaminho o documento. Em anexo, encaminho a carta. Encaminho as cartas em anexo.
  Vocativo
  O vocativo não se dirige à pessoa. Dirige-se ao cargo da autoridade. Escreve-se com as iniciais maiúsculas (Senhor Diretor, Senhor Presidente, Senhor Chefe). O texto começa sempre com letra grandona: Escrevo-lhe a fim de lhe comunicar o andamento do processo…
  Ufa!