O vôo da águia

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DAD SQUARISI // dad.squarisi@@correiobraziliense.com.br
 
O brasileiro elegeu quase 10% de mulheres. Contradição? Parece. Elas são 51,8% dos votantes. Exibem mais diplomas de nível superior que os homens. Tiram as melhores notas nos concursos públicos. Mas são gatos-pingados no parlamento, assembléias legislativas, câmaras de vereadores, palácios de governo. O pleito de domingo confirmou a regra.
 
Dizia-se que era discriminação. Os partidos políticos não dariam oportunidade às mulheres. Veio, então, a lei das cotas. Na lista de postulantes de cada agremiação, deve haver gente de saia e gente de calças. Existe um percentual máximo (70%) e um mínimo (30%) de aspirantes de cada sexo a cargos proporcionais. Abertas as inscrições, cadê elas? Os partidos não conseguiram completar o número de candidatas.
 
Por que a inapetência pelos palanques? As convictas alegam falta de vocação. As realistas afirmam não ter dinheiro pra sustentar a campanha. As casadas se queixam da indiferença do marido. As desligadas confessam não ter pensado no assunto. As pragmáticas declaram ter outras prioridades. As preconceituosas juram que política é coisa de homem. Reuniões intermináveis, conchavos, negociatas, conversas ao pé do ouvido… Ufa!
 
Vale lembrar velha lenda do folclore africano. Uma aguiazinha caiu num galinheiro. Aos poucos, aprendeu o jeito galináceo de ser. Ciscava o chão, comia milho e dormia no poleiro. Com o tempo, desaprendeu o vôo nas nuvens, o frio das alturas, o sentimento de liberdade. Um dia apareceu ali um homem familiarizado com o vôo orgulhoso das rapineiras. Informou à penosa que ela não era galinha. A coitada se assustou. Disse que altura lhe dava vertigem, que preferia a segurança do chão.
 
O homem agarrou-a à força e a levou ao alto da montanha. Jogou-a no vazio. Foi então que o pavor, misturado à memória que ainda morava no seu corpo, a fez bater as asas. Pouco a pouco, abriu-se em confiança, reconhecendo o espaço enorme que lhe havia sido roubado. Descobriu, então, que não se chamava galinha. Chamava-se águia. A história dela, como a das mulheres, passa pela acomodação e o conformismo. Põe a nu o medo muito humano da mudança. E escancara o pânico de alçar vôo.

 

(artigo publicado em Opinião do Correio Braziliense)