O som das palavras

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   José Paulo Cavalcanti Filho*

Manda quem pode (Dad Squarisi), obedece quem tem juizo (este seu criado). Assim seja, então. E escrevo esse artigo a partir dos ensinamentos de Rouxinol, velho cantador de Gravatá (Pe): “Cada qual para o que nasce/ Cada qual com sua classe/ Seus estilos de agradar/ E quem tem o mel, dá o mel/ Quem  tem o fel, dá o fel/ Quem nada tem, nada dá”. Apesar de mel pouco, Dad mandou (ou pediu, no seu caso tanto faz) e seguem alguns conselhos  aos mais jovens, no exercício do duro (e doce) ofício de escrever:    1. A pior palavra. Num texto, sem dúvida, será  eu. Além de meu ou minha. Ruim porque afasta o leitor, dando ideia de prepotência. Ao escrever sobre mortos, por exemplo, vemos sempre três tipos diferentes de textos. Um é O morto, que seria o certo. Outro, O morto e eu, já meio ruim. Sem contar o pior, Eu e o morto. Como se o autor do texto fosse mais importante que o desafortunado defunto. Como toda regra tem exceção, fique de fora da reprimenda o único livro do grande Augusto dos Anjos, que tão cedo se foi, Eu. Escrito o título, na página em branco que cobria os originais, com o próprio sangue. Assim se explicando porque, nas livrarias, o título vai sempre em vermelho, sobre uma capa clara.   2. Adjetivos. São sempre ruins. Melhor escrever só usando substantivos. Quando se recorre aos adjetivos, é que a ideia não foi suficientemente boa para convencer sozinha. Meu velho pai dizia sempre esta frase:  “A mão aberta é um tapa, a mão fechada é um murro, e é a mesma mão”. Os dedos são os adjetivos. Se você puder escrever sem eles, o poder de convencer vai ser com certeza maior. Como um murro.   3. Cadência. Cada escritor tem cadência própria. Escolha a sua. Porque as frases fluem a partir do estilo de quem escreve. Inclusive nas vírgulas. Saramago, por exemplo, reproduzindo (ou tentanto reproduzir) a oralidade que ouvia nos interiores da Península Ibérica, escreve 21 antes de cada ponto, no Evangelho segundo Jesus Cristo; e 19, em Caim. Na média, 20. Já Fernando Pessoa usava só duas vírgulas. Como se as ideias escorressem por três ondas. Um, dois e… três. Um, dois e… três. No meu caso, quase nunca uso as vírgulas. Prefiro frases curtas. Secas. Diretas. O que me trouxe um problema ao escrever uma biografia de Pessoa — no fundo, espécie de diálogo entre frases dele e as minhas. Porque Pessoa escrevia em três ondas e eu em uma. O texto ficava sem cadência. Ruim. O que me levou no livro a também escrever como ele, com duas vírgulas por frase. Acontece.   4. Sinais ortográficos. Nesse ponto, lembro o grande António Gedeão: “Inútil seguir sozinhos/ Querer ser depois ou antes/ Cada qual com seus caminhos/ Onde Sancho vê moinhos/ Dom Quixote vê gigantes./ Vê moinhos?, são moinhos./ Vê gigantes ?, são gigantes”. Cada qual com seus caminhos, pois. Há os que usam ditos sinais a partir da ortografia convencional. Enquanto outros, para indicar a cadência das frases. Como que ensinando o leitor a ler como o autor escreveu. O próprio Gedeão diz: “Vê gigantes?, são gigantes“. Com vírgula depois de um ponto de interrogação. Heresia!, dirão. Que nada, respondo. E não é só ele. Muita gente boa, também. Semana passada mesmo, Helio Schwartsman, colunista da Folha de São Paulo, escreveu: “Como?, pergunta-se o leitor são”. Com vírgula, novamente, depois de um ponto de interrogação. Errou? Penso que não. Porque, senão, teríamos só o leitor são que continuaria a perguntar “Como?”   5. O som das palavras. Para acabar, recomendo ler sempre em voz alta o que se escreveu antes de publicar. Depois de pronto o texto, deixar algum tempo na gaveta e então ler tudo. Como se fosse algo escrito por outro. Penso que isso me veio dos tempos em que estudava para ser maestro (com oito anos de piano clássico). Aprendi a ler com o ouvido. Compreendi, nesse caminho, que as frases são como uma espécie de música. E letras, como notas musicais. Algumas — como o P, o T, o R — são duras. No reino das vogais, o I e o U também são. Enquanto o A e o O se revelam doces. Razão pela qual se deve ter cuidado, nas frases, para não usar muitas letras duras. O som sai feio. Talvez por causa disso Camões, ao completar seu  “Soneto 48”, tenha preferido escrever (certamente contrariado) “maminha”. Por ver, nessa construção, um mal menor. Em vez de MinhA Alma gentil que te partiste, uma frase monótona e com dois aa colados, ficou Alma minha gentil que te partiste”. Com a vantagem adicional, na cadência, de certo balanço no verso. Melhor maminha, então, que dois aa pegados. Esse o conselho.   Dando os trâmites por findos me despeço, caro leitor, lembrando bem conhecida frase de Guimarães Rosa em uma paráfrase: Escrever, amigos meus, é muito perigoso.  

Autor de Fernando Pessoa, uma quase autobiografia (jp@jpc.com.br)