O amor é cego, mas não é surdo

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Hoje é Dia dos Namorados. Comerciantes esfregam as mãos. Esperam o terceiro faturamento do ano. O 12 de junho só perde para o Natal e o Dia das Mães. As vitrines apresentam tentações pra todos os bolsos e gostos. Restaurantes fazem cardápio especial pra noite pra lá de especial. Massagistas, cabeleireiros, maquiadores completam a agenda com muiiiiiiiiiiiiiita antecedência. Tanto esforço tem explicação. Todos querem conjugar o verbo namorar. Mas nem sempre conseguem. Às vezes, falta parceiro. Outras vezes, o companheiro não é a cara-metade dos sonhos. Há os casos em que o ouvido conta mais que o coração. Descobre-se, então, que o amor é cego, mas não é surdo. Histórias não faltam.
 
 
Maria e Pedro
 
Maria estava sem namorado. Moderna, joga no time das personagens de Sex in the City. Vai atrás. Na balada de sábado, aconteceu. Encontrou o homem dos sonhos. Lindo como Brad Pitt, Pedro chamava a atenção da moçada solitária e acompanhada. Ela partiu pro ataque. Provocante, buscou o olhar dele. Sorriu. Encaminhou-se até a mesa em que o bonitão estava. Chegou-se com malícia e lhe ofereceu um gole de vinho na mesma taça em que bebia. O charmoso agradeceu:
 
— Muito obrigada.
 
A moça murchou. Decepcionada, deu-lhe as costas com o decote até a cintura. O atônito desprezado não entendeu nada. Nem desconfiou de que, ao agradecer, pôs a masculinidade em xeque. A razão: o homem diz obrigado. A mulher, obrigada. Ambos respondem por nada.
 
 
Clarice e Paulo
 
Clara nasceu com muitos talentos. Pinta, dança, representa, declama, escreve. Por sugestão de amigos, concorreu ao Prêmio Nestlé de Poesia. Ganhou. O livro teve edição de 100 mil exemplares. Num país em que a tiragem raramente ultrapassa os 2 mil, o número assusta.
 
Os amigos aproveitaram pra festejar. Que tal uma festinha em Buenos Aires? A viagem seria por adesão. Dez pessoas se inscreveram na hora. Ela, feliz, contou o plano pro namorado. “Eu adero”, vibrou, entusiasmado, o senhor de meia idade.
 
Clara estremeceu. Parou o carro no meio da avenida movimentada e mandou-o descer. O coitado, desapontado, obedeceu. Eles nunca mais se falaram. Ao comentar o episódio, Paulo desdenha: “Caprichos de poeta”. Não se deu conta de que aderir se conjuga como preferir. Pra fazer parte da comitiva, ele deveria ter dito “eu adiro”, do mesmo jeito que “eu prefiro”. Bobeou. Adeus, grande amor!
 
 
Tati e João
 
Recém-separado, João viveu um luto doloroso. O tempo passou. A tristeza bateu asas e se foiiiiiiiiiiiiiiiiiiii. Ele acordou leve e alegre. Cantou durante o banho. Fez a barba com cuidado, vestiu roupa nova e ganhou a rua. No bar, encontrou amigos. Entre um chope e outro, pintou a paquera.
 
Ele sorriu pra ela. Ela sorriu pra ele. Minutos depois, lá foi ele. Copo na mão e dentes à mostra, chegou-se sem pressa. Olhos nos olhos, perguntou sedutor:
 
— Posso me sentar na sua mesa?
 
— De jeito nenhum. Pega mal.
 
— Você tem compromisso?
 
— Não.
 
— Então…
 
— Se você se sentar na mesa, vai disputar o espaço com a cerveja, os pastéis e o queijo. Não há lugar pra tanto.
 
Ele se lembrou de valha lição da dona Valci. A professora repetia sem se cansar:
 
— Pra indicar proximidade ou vizinhança, só a preposição a tem vez. Por isso, uma pessoa só pode estar ao volante, à janela, à porta. Estar no volante, na máquina, na porta? Nem pensar. Maltrata o bumbum.
 
Ele soltou uma risada pra lá de gostosa. Divertido, disse baixinho:
 
— Desculpe-me. Estou de porre. Eu quero pôr o copo na mesa e sentar-me à mesa. Posso?
 
Eles se sentam à mesma mesa até hoje. Falam ao telefone todos os dias. Em casa, ficam um tempão à porta conversando. No avião, disputam o lugar à janela. Volta e meia, cochicham ao ouvido um do outro. Juntos, descobriram que a felicidade é para quem a faz, não para quem a procura.