Manhas e artimanhas do infinitivo

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O português é uma língua difícil? É. Todas as línguas de cultura são difíceis. O português não foge à regra. Como inglês, francês, espanhol, árabe ou russo, o idioma nosso de todos os dias exige que lhe estudemos as manhas da fonética, morfologia e sintaxe. No mar de regras e exceções, um assunto ganha relevo. Trata-se do infinitivo flexionado. Não há quem não trema nas bases na hora de empregá-lo.
  Aquiles Moisés dos Santos, de BH, é um dos quase 200 milhões de brasileiros que estremecem só de pensar no assunto. Outro dia, ele encaminhou esta dúvida: “Deixai vir a mim os pequeninos ou deixai virem a mim os pequeninos. Ambas as frases são corretas. Em `Deixai-os vir a mim´, pode o infinitivo ser flexionado — Deixai-os virem a mim?”
 
Sem igual
  Só o português tem dois infinitivos — o impessoal e o pessoal. O impessoal é o nome do verbo (amar, ver, ir). Usa-se em locuções verbais (vou amar, pode ver, devem ir). No caso, só o auxiliar se flexiona. O pessoal tem sujeito. E, claro, deveria concordar com ele em pessoa e número (para eu pôr, tu pores, ele pôr, nós pormos, eles porem).
  Eis o xis da questão. Nem sempre o infinitivo se flexiona. Quando, então, flexioná-lo? Os gramáticos não se entendem. Dizem que é questão de eufonia e clareza. A frase precisa soar bem e ser clara. Rigorosamente, a flexão só é obrigatória quando o infinitivo tem sujeito próprio, diferente do da oração principal. Assim:
Esta é a única oportunidade de João e Rafael disputarem a medalha.
(O sujeito da primeira oração é esta; da segunda, João e Rafael). Nota 10 para o plural.
 
Recado oculto
  Se o sujeito da oração principal for o mesmo da subordinada, a flexão do infinitivo é facultativa. A ausência da flexão dá o recado. Diz que se trata do mesmo sujeito:
  Fechamos a janela para não sentir frio. (Quem fechou a janela? Nós. Quem não sentirá frio? Nós.)
Telefonaram para marcar consulta. (Quem telefonou? Eles. Quem marcou consulta? Eles.)
 
Clareza
  Às vezes a flexão se impõe não pela correção, mas pela clareza. Observe:
Saí mais cedo para irmos ao teatro
Saí mais cedo para ires ao teatro.
Saí mais cedo para irem ao teatro.
  Deu-se conta da manha? Se o infinitivo não estivesse flexionado (para ir ao teatro), a frase estaria correta, mas trairia a verdade. Quem vai ao teatro não sou eu, mas nós, tu, eles). Bem-vinda, flexão! Bem-vinda, clareza!
 
A dúvida de Aquiles
  Voltemos à vaca fria. No exemplo dado por Aquiles — Deixai-os vir a mim´, pode o infinitivo ser flexionado — Deixai-os virem a mim?” Não. Na língua como na vida, nem todos são iguais perante as regras. Alguns são mais iguais. É o caso de mandar, fazer, deixar, ver e ouvir. Com eles, a flexão é facultativa. Assim, a gente pode dizer sem medo de errar: Deixai as criancinhas vir (ou virem) a mim. Vi os dois sair (ou saírem) da sala. Ouvi os cães latir (ou latirem). Fiz os alunos estudar (ou estudarem) mais. Pai mandou os filhos chegar (ou chegarem) mais cedo.
 
O caso
  A exceção tem limite apertado. Se o sujeito for pronome átono, acabou a folga do infinitivo. Ele só pode ficar no singular. É o caso do Aquiles: Deixai-as vir a mim. Vi-os deixar a sala mais cedo. Ouviu-as chegar. Mandei-os sair.