Lavar palavras

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Dad Squarisi // dad.squarisi@@correioweb.com.br
 
A língua faz milagres. Poderosa, condena e absolve. Conquista e rejeita. Fala e diz. Ou fala sem dizer. Esopo, autor de fábulas famosas como “A raposa e as uvas”, conta uma história sobre a força das palavras. Um dia, narra o pensador grego, um senhor mandou o mordomo preparar um jantar com o que houvesse de melhor. Iria receber visitas importantes que deveriam sentir-se homenageadas com o banquete.
 
Portanto, escolhesse as melhores carnes, as mais sofisticadas especiarias, as frutas, as verduras e os legumes mais frescos, bonitos e vistosos. Assim foi feito. Na recepção, a entrada foi língua. O prato principal, língua. A sobremesa, língua. Contrariado, o mandachuva chamou o criado e, voz indignada e cara de poucos amigos, exigiu explicações. O serviçal lhe disse:
 
— O senhor pediu que eu preparasse o jantar com o que houvesse de melhor. O que pode superar a língua? Com ela, as pessoas namoram, estudam, conquistam parceiros, ganham promoções, educam os filhos, conversam com Deus.
 
Inconformado, o patrão mandou-o preparar outro banquete. Mas com o que houvesse de pior. O serviçal repetiu o cardápio. Questionado por tanta ousadia, explicou:
 
— A língua leva ao céu. Leva, também, ao inferno. Com as palavras, caluniamos, insultamos, mentimos, maltratamos, declaramos guerra, prejudicamos a nós e aos outros.
 
A fábula vem à luz a propósito do depoimento de José Aparecido na CPI dos Cartões. Acusado de vazar documentos sigilosos, ele apelou pra magia das palavras. Dossiê, vocábulo criminoso, passou a chamar-se planilha de dados seletiva. Vazar, que arrepia, virou enviar por engano. Com isso, branqueou o ato. O recurso é pra lá de conhecido. Vale um exemplo. Clinton jurou de pés juntos que não manteve relações sexuais com Monica Lewinski. Apenas “relações impróprias”. Foi absolvido.
 
(artigo pulicado na edição de hoje do Correio Braziliense)