Cabe mais um?

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Eu cansei, você cansou, nós cansamos. A exaustão tem nome e endereço. Chama-se realizar. Encontra-se em jornais, rádios e tevês. Locutores, publicitários, repórteres, personagens de novelas & sociedade ilimitada transformaram o polissílabo em verbo-ônibus. O nome diz tudo. O transporte coletivo carrega 56 passageiros sentados e 24 em pé. O verbo, coitado, verga-se ao peso de significados que nada têm a ver com ele.

A turma deixou de promover shows. Agora realiza shows. O estudante não faz pesquisa. Realiza pesquisa. O time não disputa a partida. Realiza a partida. O autor não lança o livro. Realiza o lançamento do livro. O morador não reforma a casa. Realiza a reforma da casa. O policial não mantém encontros sigilosos. Realiza encontros sigilosos. O cliente não deposita dinheiro no banco. Realiza o depósito. Até o padre entrou na onda. Ele desistiu de celebrar missa. Doravante só realiza missas.

Ufa! O abuso passou dos limites. Daí a reação. O Observatório da Imprensa publicou artigo de Montezuma Cruz. O título: “Realizar demais, eis a questão”. Examinadores reprovam candidatos que realizam maus trabalhos. Apaixonados acabam o namoro com o parceiros que realizam saídas noturnas. Editores demitem jornalistas que realizam falsos furos de reportagem. Mais: ONGs e grupos de defesa dos direitos verbais realizam recursos ao Judiciário. Querem indenização pelos maus-tratos sofridos por ouvidos e olhos. Eles realizaram despesas médicas e farmacêuticas. Quem realizará o pagamento?

Abuso, eis a questão

“Realizar é verbo forte, mas virou arroz de festa nos títulos e nos subtítulos. Usá-lo excessivamente pode retirar do texto a elegância e prejudicar a criatividade”, escreveu Montezuma Cruz. E daí? Deve-se cassar o polissílabo sem dó nem piedade?

Claro que não. Diante do modismo, convém seguir o conselho do pai mineiro. Cheio de saber, o velho senhor diz ao jovem que se aventura nas ruas: “Meu filho, não saia. Se sair, não gaste. Se gastar, não pague. Se pagar, pague só a sua”. É isso. Seja sovina. Use, não abuse. Dê passagem ao realizar na acepção original. Ele deriva de real. A latina quer dizer verdadeiro, que existe de fato. Que tal realizar o sonho?