Acordo ortográfico entre amigos

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        Ninguém esperava. Mas aconteceu. Em 2009, entra em vigor o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. A história começou em 1990. Em dezembro, os sete países lusófonos assinaram o acerto em Lisboa. Impuseram uma condição para as mudanças entrarem em vigor: a ratificação do total de signatários.
  
O tempo passou. Angola e Moçambique enfrentavam guerras civis. Não estavam nem aí pra tremas e acentos. Mas o Brasil tinha pressa. O dicionário Houaiss estava em gestação. O autor mexia os pauzinhos pra promover a explosão de vendas. Se saísse com as mudanças, mandaria o Aurélio pra fogueira.
 
 
Os parceiros não tinham nada com a urgência. Deu-se um jeitinho. Em 1998, fizeram um remendozinho no texto. Em 2004, outro. Resultado: três países seriam suficientes para pôr a moda na rua. No mesmo ano, nós ratificamos as modificações. Em 2006, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe foram atrás. Brasília, Praia e São Tomé adotarão as novas regras em janeiro. Os demais ficam de fora.
 
 
 DIRETAO que muda?
 
 
O acordo é ortográfico. O nome não deixa dúvida. Ortografia é a parte da gramática que trata da grafia correta das palavras. Abrange o emprego das letras e das notações léxicas (acentos, til, trema, apóstrofo, cedilha e hífen). O que muda com as novas regras? Pouca coisa.
 
 
1. O alfabeto abre as portas para o k, o we o y. De 23, passa a ter 26 letras.
  
2. O trema morre. Assim, em lugar de lingüiça ou freqüente, escrever-se-á linguiça e frequente. Mas a pronúncia se conserva.
 
3. As paroxítonas (só elas) perderam acentos:
 
a. O hiato ôo vira oo. Vôo, enjôos e abençôo? Nem pensar. Doravante será voo, enjoos e abençoo.
 
b. O agudo dos ditongos abertos éi e ói ganha a porta da rua.  Assembléia e jóia passam a grafar-se assembleia e joia.
  
Não comemore. A despedida deles é até logo, não adeus. As oxítonas e os monossílabos tônicos não mereceram a atenção da reforma. Manter-se-ão antigos como os casarões de Olinda e Ouro Preto: sóis, papéis, constrói.
 
 c. O êem vai pra terra do nunca. Em vez de eles vêem, lêem, crêem, dêem, as formas veem, leem, creem, deem pedem passagem.
 
d. Caem fora os acentos diferenciais (das paroxítonas, lembre-se) que escaparam da reforma de 1971 por cochilo do legislador. É o caso de pára, pólo, pélo, péla, pêlo, pêra. Não se enquadra, aí, a forma pôde, passado do verbo poder. Nem o pôr (ele não é
paroxítono).
 
      e. Averigúe, apazigúe, argúem jogam o acento no lixo. Tornam-se averigue, apazigue, arguem.
 
 
4. O hífen conserva a fama. É castigo de Deus. Era, é e continuará caótico. Nem o Todo-Poderoso domina a manha do tracinho. Com o troca-troca, a confusão (nossa e do Senhor) permanece.
 
 

Qual é a dela?
 
 
Os defensores dos retoques alegaram causas nobres para a reforma. Segundo eles, a expulsão do pobre trema e dos acentinhos daqui e dali promoveriam milagres dignos de Cristo. Pra começo de conversa, traçaram quatro objetivos. Um: melhorar o intercâmbio cultural entre os países lusófonos. Dois: reduzir o custo da produção e tradução de livros. Três: facilitar a difusão bibliográfica e de novas tecnologias. O último: aproximar as nações de língua portuguesa.
 
 

Vale a pergunta
 
 
Será que a queda do trema e mudança de um acentinho aqui e ali têm poder de competir com Jesus? Nós chamaremos moça de rapariga e rapaz de gajo? Os portugueses chamarão comboio de trem? Nós passaremos a ler os autores africanos e eles a lerem os brasileiros? Será que os 230 milhões de pessoas que povoam Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e o recém-agregado Timor Leste (os integrantes da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, ou CPLP) invadirão a cultura uns dos outros?
 
 
Em compensação, faremos fogueira de dicionários, gramáticas & cia. letrada. O MEC prepara licitação pra troca dos livros didáticos. Pais terão de substituir as obras das estantes pra garotada estudar. A farra tem preço. Quem pagará a conta? É por essas e outras que os portugueses ficaram de fora. Deixam como está pra ver como é que fica.
 
 
 
Stendhal alertou:
 
 
“A ortografia não faz o gênio.”