A redondilha cola na memória

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O verso mais popular do português? É a redondilha maior. Com sete sílabas, ela cabe na boca e gruda na memória. Todos a amam. As cantigas de roda abusam do modelo. A música popular também. Quem não canta A banda, de Chico Buarque, de cor e salteado? A poesia brasileira não fica atrás. A canção do exílio, de Gonçalves Dias, serve de exemplo. Ela frequenta salas de aula, saraus e a casa da gente com a familiaridade do sapato velho e da camiseta que aprendeu a forma do corpo.

Como saber se o verso é heptassílabo? O ouvido ajuda. Se ele gosta do ritmo, não precisa nem fazer o teste. Mas, se um descrente faz questão de ver para crer, basta contar o número de sílabas. É fácil. Mas ele tem de observar uma manha. A contagem para na sílaba tônica. Exercite:

Terezinha de Jesus / Deu a queda foi ao chão / Acudiram três cavaleiros / Todos três chapéu na mão.

Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá / As aves que aqui gorjeiam / Não gorjeiam como lá.

Estava à toa na vida / O meu amor me chamou / Pra ver a banda passar / Cantando coisas de amor.  

A excelência do Pai

A língua também tem formas que soam como redondilhas. Elas têm tudo a ver com a perfeição. Dizem que filho de peixe sabe nadar. Ora, se somos filhos de Deus, temos a mesma ânsia de excelência do Senhor. Por isso gostamos da rosa sem os espinhos. Em bom português: gostamos da correção.

Leitores de jornal, ouvintes de rádio, telespectadores de noticiários sentem-se incomodados com tropeços linguísticos. Com razão. As trombadas lhes desviam a atenção dos fatos. Em vez de se concentrarem nos acontecimentos, concentram-se nos maus-tratos impostos a flexões, concordâncias, regências, pronúncias etc. e tal. Eis exemplos comentados na redação do jornal.   Língua de trapos

Quem fala demais dá bom-dia a cavalo. Ou tem língua de trapos. Assim, bem comprida — sem hífen e no plural. Nós esquecemos o fato. Na pág. 30, apareceu ‘‘língua-de-trapo’’. A grandona protesta. Põe a boca no mundo.

Outro

Elas vêm devagarinho. Aparecem aqui e ali. Aos poucos, propagam-se. E viram praga. É o caso do outro. O pronome aparece onde não tem vez. Desnecessário, sobra. Vale o exemplo ‘‘Unido a outros 19 secretários de Fazenda das demais regiões do Brasil, Valdivino Oliveira vai ao Senado’’. Na dúvida, basta ler a frase sem o intruso. Ah!, respira ela aliviada.

Papa

Vivemos num Estado laico. Aqui, religião não goza de privilégio. Nem os representantes de Deus na Terra. Por isso, papa joga no time de presidente, ministro, governador, prefeito. Escreve-se com a inicial minúscula. Esquecemos a isonomia. Na capa, apareceu Papa. É discriminação. Dá xilindró.

Aspas

Dentro ou fora? Depende. Se o período se inicia com aspas, o ponto vai dentro delas. Se as aspas pegam o bonde andando, o ponto vai fora. Ignoramos a regrinha na pág. 2. Lá está, começando o texto: ‘‘Tirem as crianças da sala’’. Viu? O período começa dentro das aspas. O ponto faz parte dele.

Numeração de artigos

‘‘Tudo certo como dois e dois são cinco’’, canta Caetano. Tradução: engana-se quem pensa que os números são exatos. Ou que não dão trabalho. Dão – e muito. Usá-los exige atenção e bom senso. Na numeração de artigos de leis, decretos e portarias, usa-se o ordinal até 9 e o cardinal de 10 em diante: art.1º, art. 5º, art. 10. Ontem pisamos a bola. Na pág. 5, escrevemos ‘‘art. 207º’’. Nossa Senhora! É art. 207.

O moral

‘‘Quem de palavras tem experiência sabe que delas se deve esperar tudo’’, repetia José Saramago. É que as palavras são enganadoras. Ao menor descuido, entramos na delas. Um dos perigos é o gênero do vocábulo. O masculino tem um significado; o feminino, outro. É o caso de cabeça. O cabeça quer dizer o chefe. A cabeça, parte do corpo. Caímos na armadilha. Escrevemos: ‘‘O presidente encontrará a Argentina com a moral alta’’. Nada feito. A moral é o conjunto de regras de conduta ou conclusão que se tira de uma obra (a moral protestante, a moral da história). O moral joga em outro time. É astral, brio: O presidente encontrará a Argentina com o moral alto.

Já… mais

“O brasileiro desperdiça porque não precisa plantar bananeiras. Elas nascem espontaneamente”, repetia Roberto Campos. Esquecemo-nos de apagar a luz ou de consertar o pinga-pinga da torneira. Esquecemos a mangueira jorrando água. Esquecemos de baixar a chama do fogão depois de iniciada a fervura. Etc. Etc. Etc. O esbanjamento chegou à língua. Redundâncias pululam no texto sem cerimônia. O caderno Veículos serve de prova. Estampou na capa: “Os motores evoluíram nas últimas décadas e já não exigem mais tanto cuidado”. O uso simultâneo de e mais é desperdício. Melhor ficar com um ou outro: Os motores já não exigem tanto cuidado. Os motores não exigem mais tanto cuidado.

Maçom

“A Casa Masson só vende o que é bom”, dizia o jingle da melhor joalheria de Porto Alegre em tempos idos e vividos. Masson é o nome da família proprietária de ouros, pérolas e diamantes. Não tem nada com maçom, membro da maçonaria. Misturamos alhos com bugalhos. Escrevemos: “Nossos ataques contra alvos massônicos continuarão”. Os alvos têm relação com a maçonaria? Então o ç pede passagem..