A diferença? É o recheio

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Redação oficial? Redação legislativa? Redação acadêmica? Redação isto, redação aquilo? O professor Antônio Sales dispensava os adjetivos. “Existem”, dizia ele, “dois tipos de textos — o literário e o não literário. Ambos começam com letra maiúscula e terminam com ponto. A diferença está no recheio. O primeiro esbanja talento. O segundo, informação.” Talento é dom divino. Informação, conquista.
  Sem linha direta com Deus, deixemos a literatura pra lá. Resta-nos suar a camisa — escrever um texto profissional. Ele tem qualidades — adequação, naturalidade, clareza, concisão e respeito à norma culta. Como chegar lá? É o desafio de estudantes, vestibulandos e concurseiros. Primeiro passo: distinguir os enunciados (tudo o que se diz ou se escreve). São três. Os comunicados apresentam fatos. As inferências expõem deduções. Os julgamentos emitem opinião. Todos falam. Mas só um diz.
  Comunicados
  Os fatos independem de gosto, opinião ou fé. Como são verificáveis, convencem. Provam “Contra os fatos”, diz a sabedoria popular, “não há argumentos”. É fato afirmar que o artigo 128 do Código Penal prevê o aborto legal. Duvida? Pegue o livro na estante e verifique. É fato dizer que Brasília tem 2,5 milhões de habitantes. As estatísticas do IBGE não nos deixam mentir. É fato dizer que haverá eleições em outubro.
  Eis um comunicado. Nele, os enunciados podem ser classificados de verdadeiros ou falsos. A razão? São fatos:
  A sociedade decidiu agir. Apresentou o Projeto Ficha Limpa — com 1,7 milhão de assinaturas. Dois milhões de cidadãos aderiram depois pela internet. Objetivo: impedir que pessoas julgadas por tribunal se candidatem a cargo eletivo. Pressionada, a Câmara aprovou o texto. Chegou a vez do Senado. Suas Excelências reagiram. “A prioridade do povo não é prioridade do Senado”, disse o líder Romero Jucá. Mais tarde, voltou atrás. Os senadores aprovaram o Ficha Limpa. Os fichas sujas festejaram. Por quê? A mudança no tempo verbal livrou os condenados antes da aprovação da emenda.
  Inferências
  Inferir é tirar conclusões com base em indícios. Vai um exemplo: Maria está esperando nenê. Diz que a gravidez veio em hora errada. Aí minha cabecinha começa a funcionar. Deduzo que ela vai optar pelo aborto. Posso ter acertado. Mas posso também ter errado. Minha conclusão é possível, talvez provável. Mas não certa. Que inferência podemos fazer da votação do Senado? Muitas. Eis uma:
  A sociedade decidiu agir. Apresentou o Projeto Ficha Limpa — com 1,7 milhão de assinaturas. Dois milhões de cidadãos aderiram depois pela internet. Objetivo: impedir que pessoas julgadas por tribunal se candidatem a cargo eletivo. Pressionada, a Câmara aprovou o texto. Chegou a vez do Senado. Suas Excelências reagiram. “A prioridade do povo não é prioridade do Senado”, disse o líder Romero Jucá. Mais tarde, voltou atrás. Os senadores aprovaram o Ficha Limpa. Os fichas sujas festejaram. Por quê? A mudança no tempo verbal livrou os condenados antes da aprovação da emenda. Se alguém tinha dúvida, deixou de ter. Os senadores devem estar pendurados na Justiça. Se não estão, com certeza alguém da família está.
  Julgamentos
  Os julgamentos exprimem opinião pessoal. Indicam aprovação ou reprovação. Feio, bonito, elegante, pecaminoso, bem-feito, malfeito – falam de como vemos as pessoas e as coisas. A língua, generosa, tem expressões que traduzem a subjetividade dos julgamentos: Quem ao feio ama bonito lhe parece. Cada cabeça, uma sentença. Para quem ama, urubu é branco. O Brasil tem 180 milhões de técnicos de futebol. Que seria do amarelo se todos gostassem do vermelho? Gosto não se discute. A decisão do Senado autoriza mil opiniões. Damos uma:
  A sociedade decidiu agir. Apresentou o Projeto Ficha Limpa — com 1,7 milhão de assinaturas. Dois milhões de cidadãos aderiram depois pela internet. Objetivo: impedir que pessoas julgadas por tribunal se candidatem a cargo eletivo. Pressionada, a Câmara aprovou o texto. Chegou a vez do Senado. Suas Excelências reagiram. “A prioridade do povo não é prioridade do Senado”, disse o líder Romero Jucá. Mais tarde, voltou atrás. Os senadores aprovaram o Ficha Limpa. Os fichas sujas festejaram. Por quê? A mudança no tempo verbal livrou os condenados antes da aprovação da emenda. Se alguém tinha dúvida, deixou de ter. Os senadores devem estar pendurados na Justiça. Se não estão, com certeza alguém da família deles está. São todos corruptos.