Quando os Planos Vão Por Água Abaixo

Publicado em cuidado
Cosette Castro

Brasília – Um dos maiores sustos que levei com a minha mãe, já com demência, foi durante uma viagem de carro  à região da Serra no Rio Grande do Sul.

Era  janeiro, pleno verão no Sul do país. E Porto Alegre já havia entrado na fase “Forno Alegre”. Algo em torno de  32, 35 graus, com alta umidade. Uns 90%.

O que foi planejado para ser uma semana de passeio ao ar livre, em uma região de beleza e natureza privilegiada, se tornou um desafio diário, principalmente porque demorei pra me dar conta que minha mãe estava passando da fase inicial para a fase intermediária do Alzheimer, em plena viagem.

Poucos dias antes, apesar das perdas cognitivas,  ela parecia estar contente com a ideia da viagem. E eu ia contando os planos aos poucos, todos os dias. Íamos fazer um roteiro já conhecido. Meus pais gostavam de viajar de carro pelo Rio Grande do Sul. Era algo que estava agradavelmente marcado em nossas memórias.

Antes da viagem  aproveitei para tirar os álbuns de fotografias do armário  relembrando passeios do tempo em que meu pai ainda estava vivo. Visitas a amigos, a locais turísticos e a festivais, como a Festa da Uva ou do Morango.

Naqueles tempos um dia bonito bastava para pegar o carro e viajar no fim de semana. E um dos programas prediletos em qualquer das quatro estações do ano era subir a região serrana.

Parecia que estávamos  em um filme ao passear pela Rota Romântica, roteiro que atualmente atravessa 14 municípios do Rio Grande do Sul. A estrada é ladeada por hortências, tendo ao fundo as  montanhas e a Mata Atlântica.

Planejei subir a Serra Gaúcha de carro  em um ritmo  lento. Ir parando,  ver a paisagem, comprar frutas e produtos artesanais na beira da estrada. E comer em um restaurante sem muita gente  ou barulho para não estressar minha mãe. Mas, sim, tinha muita gente e minha mãe se estressou.

Não levei em consideração o quanto seria pesado ser motorista e cuidadora 24h durante uma semana. Naquele momento, nem levei em consideração que cuidado e autocuidado deveriam andar lado a lado.

Íamos passar por diferentes  cidades, estaríamos  longe da casa  dela e dos locais ainda reconhecíveis para minha mãe. Quase estava esquecendo que quem estava a meu lado não era mais a Carmencita saudável que adorava viajar.

Já na estrada descobri as primeiras dificuldades. O trajeto de quase 100 quilômetros durou bem mais de três horas. Foram várias paradas. Minha mãe sentiu desconforto, dores e cansaço. Ainda bem que tinha  água e medicação para dor.

Entratanto, houve situações em que a infraestrutura disponível não ajudava.

Por exemplo, tive de trocar a fralda geriátrica da minha mãe em um banheiro apertado. Definitivamente não cabiam duas pessoas em nenhum dos banheiros em que paramos, mesmo  para duas mulheres pequenas, como minha mãe e eu.

À vergonha de, em algumas ocasiões, se dar conta da sua própria fragilidade, se juntou a irritação de Carmencita por minhas tentativas de fechar sua bermuda. Some-se a isso o estresse pelo ambiente pouco acolhedor para pessoas com necessidades especiais. Ou o desconhecimento do público em geral em relação à pessoas com demências.

Depois dessa viagem, todas as calças e bermudas da Carmencita passaram a ter elástico na cintura. Mais fáceis e ágeis para colocar e tirar, independente do local.

Escolhi um hotel mais afastado,  com café típico da região de colonização alemã. Nada que pudesse chamar atenção para minha mãe (tentar) sair sozinha e se perder, caso eu estivesse no banheiro ou cochilando. Por segurança, informei na portaria sobre a demência e os sintomas de minha mãe. E lembrei que ela não poderia sair sozinha.

No hotel, logo no primeiro dia, ela não encontrava o banheiro que ficava dentro da cabana, localizado a poucos metros do quarto. E  a noite, Carmencita se debatia, assustada, sem saber onde estava.  Foi uma queda cognitiva brusca, assustadora. De uma hora para outra. Nem deu tempo de me adaptar a nova situação. E ainda tínhamos vários dias pela frente.

Apesar dos dias de calor, minha mãe se negou a entrar na piscina. Sem ter com quem revezar o cuidado, mal dava para molhar os pés porque ela não ficava muito tempo parada. Daquela data em diante Carmencita não entenderia mais o conceito de piscina. Não saberia pra que serve e passou a ter medo de entrar na água.

Nesse período aproveitamos para rever meus amigos desde a época da faculdade que minha mãe  também  conhecia há anos. Nada de aglomeração. Um pouco de cada vez.

Foi no banheiro da casa desses amigos que pude me esconder pra chorar. No hotel, a noite, não me dava esse direito, com medo que minha mãe acordasse mais uma vez perdida e assustada, sem saber onde estava.

Meus planos de um passeio “perfeito” nunca se concretizaram. Mas fico contente por ter tentado. Pela última vez, fiz planos e vivi uma experiência de viagem com minha mãe. Apesar dos desafios.

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