A Invisibilidade do Cuidado Feminino no ENEM 2023

Publicado em Política Nacional de Cuidado

Ana Castro, Cosette Castro & Natalia Duarte

Brasília – O tema do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) 2023, que abordou os “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” mobilizou a atenção de todo o país e também do Coletivo Filhas da Mãe. A questão da atividade feminina de cuidado e seu não reconhecimento como trabalho,  é uma realidade cotidiana para as mulheres desde cedo.

Não por acaso, as cuidadoras familiares disseram no grupo de WhatsApp: “eu poderia ter escrito essa redação”.

Há quase quatro anos falamos e escrevemos sobre a invisibilidade do cuidado familiar, o seu não reconhecimento como “trabalho” e, por consequência, a naturalização da gratuidade do cuidado feminino. Entre setembro e começo de novembro, por exemplo, este Blog tratou seis vezes sobre a questãos dos cuidados.

O ENEM é uma avaliação que mede o desempenho escolar dos estudantes ao final do ensino médio para ingresso nas universidades. Colocar a invisibilidade do cuidado e a sobrecarga das mulheres é importante para pautar o tema entre as pessoas que participaram  das provas. E repercute entre suas famílias e entorno.

Somado à política de cotas sociais e raciais, o ENEM ajudou a mudar o perfil das universitárias e universitários no Brasil. Segundo o Censo da Educação Superior (INEP, 2022),  estudantes  oriundos das escolas públicas já são maioria nas universidades públicas. O número de pessoas negras cresceu 400% e a participação de pessoas indígenas aumentou 842%.

Não sabemos se os estudantes também foram surpreendidos pelo tema, embora a atividade de cuidado, seja doméstico ou de cuidado de pessoas da família, comece, em geral, aos 14 anos. Às vezes antes, dependendo da fragilidade social da família.

Sabemos que a maioria das pessoas que participaram do ENEM são mulheres e elas cuidam desde cedo, mesmo que não se deem conta disso. Pesquisa  do IPEA (2023)  sobre cuidado estudou  jovens envolvidos na atividade de cuidados doméstico ou de outras pessoas da família. Ao invés de receberem cuidados, estavam cuidando, principalmente as meninas.  (acesse aqui)

Também sabemos da urgência e importância que o tema seja tratado em todos os espaços para deixar de ser visto como algo “natural”. E introjetado como um  “não trabalho”, como escreveu Cosette Castro (2021) no livro “Cuidado e Autocuidado entre Mulheres Ativistas no Mundo Digital” (acesse aqui).

É pouco comum entre diferentes gerações saber  que 91%  da atividade de cuidado doméstico é realizada por mulheres no Brasil, segundo o IBGE (2023). Assim como reconhecer o trabalho gratuito e invisível das cuidadoras familiares com crianças (filhos e netos), pessoas com deficiência, pessoas enfermas e com pessoas idosas, o que pode aumentar esse percentual. Elas atuam sem apoio de políticas públicas e recursos. Mais difícil saber que a falta de informações  e o trabalho gratuito leva ao endividamento e exaustão, aumentando o adoecimento, físico e mental das mulheres brasileiras.

Também é recente a divulgação do estudo complementar do IBGE sobre a população de pessoas idosas no Censo Demográfico realizado em 2022 incluindo as pessoas idosas de 60 a 64 anos – antes excluídas, apesar do Estatuto da Pessoa Idosa considerar o envelhecimento a partir dos 60 anos no Brasil.

O novo dado informa que somos 32,1 milhões de pessoas idosas, 56% a mais que no Censo de 2010, demonstrando um envelhecimento acelerado da população. As cuidadoras familiares também estão envelhecendo, apesar do imaginário popular sobre sermos um país de pessoas jovens.

Pesquisa publicada pelo Instituto de Pesquisa Aplicada (IPE/Df, 2022)  sobre o Perfil das Pessoas com Demências e sobre o Perfil das Pessoas que Cuidam no Distrito Federal, apontou o envelhecimento das cuidadoras familiares e mostrou que a maior parte das cuidadoras são pessoas negras ou pardas (acesse aqui). O estudo foi realizado em parceria com o Coletivo Filhas da Mãe e com o Fórum da Sociedade Civil em Defesa da Pessoa Idosa/DF.

Precisamos da co-responsabilidade  do Estado no cuidado e muito mais infraestrutura pública para o cuidado coletivo para todas as idades, inclusive para as pessoas 60+. É preciso reconhecer também que o cuidado é  a profissão que mais cresce no mundo e é uma atividade que precisa ser regulamentada urgentemente, inclusive com melhoria na qualidade e fiscalização dos cursos de formação.

Também é muito recente a Consulta Pública sobre a Política Nacional de Cuidados lançada dia 30/10 pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) . A proposta é ouvir todo os setores sociais sobre como redistribuir o imenso trabalho  de cuidados não remunerado que a cada dia recai sobre as mulheres brasileiras. Para isso abriu consulta pública no site Participa + Brasil até o dia 15 de dezembro para receber sugestões da sociedade, inclusive empresas.  (acesse aqui)

Colocar na agenda pública e estimular as pessoas a pensar sobre cuidado,  sobre a sobrecarga das cuidadoras, sobre o cuidado desde uma perspectiva dos direitos humanos reintegra o Brasil na agenda mundial pela vida digna e segura de todas as mulheres, incluindo as questões de raça, idade, classe social, diferentes corpos e desejos.

Temos o  direito a cuidar, a ser cuidadas e o direito ao autocuidado. No Coletivo Filhas da Mãe seguimos defendendo o fim da Sociedade da Violência e a construção da Sociedade do Cuidado que priorize a cultura da paz, as relações e projetos intergeracionais e o  cuidado integral por toda a vida. Conheça as propostas  (em aberto) do Coletivo. (acesse aqui)

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