As saias de filó da verdade

Publicado em ÍNTEGRA

Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade

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Foto: Andy Rain/EFE/EPA

 

Com o avanço vertiginoso da era digital e a difusão irrestrita de plataformas que permitem a qualquer cidadão produzir conteúdo de aparência jornalística, consolidou-se um ambiente em que a antiga guarda da imprensa, antes protegida pelo rigor institucional e pela solidez de seus procedimentos editoriais, perdeu a oportunidade crucial de afirmar sua autoridade moral e reconstruir, tijolo por tijolo, a confiança que deveria sustentar sua própria razão de existir, já que a multiplicação de vozes sem curadoria tornaria ainda mais valioso um jornalismo comprometido com a precisão, a responsabilidade e a transparência.

Em vez desse movimento natural, verificou-se um processo curioso de erosão interna, no qual veículos, historicamente reconhecidos por sua firmeza ética, foram, gradualmente, cedendo às pressões políticas, às disputas de narrativas e às tentações do espetáculo, abrindo espaço para que sua reputação fosse questionada justamente quando o mundo mais necessitava de um norte confiável.

Contextualizar esse fenômeno demanda revisitar a trajetória da British Broadcasting Corporation, fundada em 1922 como British Broadcasting Company e transformada, dois anos depois, em uma corporação pública orientada pelo princípio de servir ao interesse coletivo por meio de informação responsável, educação crítica e entretenimento de qualidade, alicerces que permitiram, à instituição, ao longo do século XX, consolidar uma credibilidade quase inabalável, baseada na convicção de que a informação não pertence a governos, corporações ou grupos de pressão, mas ao público que confia na imprensa para iluminar zonas de sombra e revelar complexidades que discursos simplificados tentam frequentemente ocultar. A solidez dessa reputação sustentou a BBC em guerras, crises econômicas e turbulências políticas, transformando-a em símbolo global de seriedade e rigor jornalístico.

Situação distinta, porém, parece caracterizar os últimos anos, período em que a corporação passou a enfrentar questionamentos judiciais relacionados tanto a conteúdos considerados enganosos, quanto a práticas editoriais vistas como incompatíveis com seus próprios padrões históricos. Relatórios internos e documentos parlamentares do Reino Unido registram que dezenas de processos por difamação e danos reputacionais foram movidos contra a BBC na última década, alguns envolvendo alegações de edições descontextualizadas, que teriam alterado o sentido original de pronunciamentos públicos, outros referentes a programas investigativos, cuja agressividade metodológica, embora tradicional no jornalismo de denúncia, ultrapassou limites éticos e resultou em indenizações e retratações. Somam-se, a isso, episódios graves como o caso Savile, que revelou omissões internas, lentidão investigativa e falhas de supervisão que, somadas ao impacto social do escândalo, abalaram a confiança institucional e revelaram tensões profundas entre autonomia editorial e dever de proteção ao público.

Reações a essas crises não se limitaram à retórica de reparação, pois a corporação, reconhecendo a gravidade dos abalos, promoveu uma revisão estrutural conduzida por Sir Nicholas Serota, cuja trajetória no setor cultural britânico é marcada por integridade intelectual, habilidade de diagnosticar fragilidades institucionais e compromisso inequívoco com padrões éticos elevados. A chamada revisão Serota percorreu documentos internos, séries de entrevistas e diagnósticos minuciosos sobre a cultura organizacional da BBC, identificando pontos cegos que permitiram que erros se acumulassem sem resposta imediata, revelando também que parte do problema derivava de uma hierarquia excessivamente dependente de processos burocráticos, que retardava a apuração de denúncias internas e, ao mesmo tempo, criava um ambiente em que o receio de abalar a reputação institucional se sobrepunha à necessidade de reconhecer falhas.

Recomendações resultantes dessa análise levaram à criação de canais independentes de denúncia, ao fortalecimento de comitês editoriais, à reformulação de procedimentos de verificação e à ampliação de mecanismos de transparência, com o objetivo de reconstruir, por dentro, os alicerces que sustentam a credibilidade pública. Esses ajustes demonstram que a credibilidade não é um bem estático, guardado em cofres blindados, mas um organismo vivo, que exige manutenção constante, vigilância institucional e disposição permanente para corrigir erros antes que se transformem em fissuras irreparáveis. Compreender a importância desse processo exige reconhecer o papel singular de Serota, cuja intervenção não apenas delineou uma espécie de cartografia ética da corporação, mas também consolidou a percepção de que a saúde institucional depende menos da ausência absoluta de falhas e mais da capacidade de enfrentá-las com franqueza, profundidade e coragem. A cultura de responsabilização iniciada a partir de seu relatório criou condições para que a BBC buscasse recuperar padrões que a haviam distinguido de tantos outros veículos, permitindo que a instituição tivesse força interna para admitir, publicamente ,equívocos e produzir reparações compatíveis com a gravidade das falhas cometidas.

Nada disso, entretanto, resolve o dilema maior que assombra o jornalismo contemporâneo: a luta cotidiana pela verdade. A proliferação de narrativas concorrentes, a competição por atenção, o imediatismo das redes e a tendência crescente de transformar opinião em fato criam um ambiente em que a verdade parece vestir múltiplas camadas, como se necessitasse de inúmeras saias de filó para proteger sua essência mais frágil da voracidade do mundo.

 

A frase que foi pronunciada:

“Os lugares mais quentes do inferno são reservados para aqueles que permaneceram neutros durante tempos de grandes provações morais.”

Dante Alighieri

Dante Alighieri. Imagem: reprodução da internet

História de Brasília

Bonito trabalho vem desenvolvendo o DFSP através do Serviço de Trânsito, disciplinando os motoristas na rua da Igrejinha. O retorno deve ser feito em frente à ilha não no meio da quadra. (Publicada em 12.05.1962)

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