Por onde anda a consciência

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Tirinha: stonetoss.com

 

Entre as várias facetas que possibilitaram a ascensão do ser humano ao patamar civilizatório — juntamente com o domínio da agricultura, do fogo, está o culto aos antepassados. Tal prática, longe de ser mero resquício de um passado obscuro e supersticioso, constitui uma das expressões mais profundas da consciência histórica e da projeção do ser humano no tempo.

Comum a todas as civilizações antigas, o ritual de celebração e rememoração dos entes falecidos constituiu-se em um dos pilares que resultaria, posteriormente, na formação embrionária da religião. Os monumentos megalíticos, os túmulos monumentais e as cerimônias fúnebres complexas. Todos esses elementos apontam para uma tentativa de dialogar com o invisível e de eternizar na memória coletiva aqueles que vieram antes e cujas ações moldaram o presente de seus descendentes.

O culto aos mortos, em seu sentido ontológico, permitiu à humanidade estender para o pretérito o significado de sua existência, ligando-a até o presente e, por consequência, expandindo o sentimento de continuidade para o futuro. Em outras palavras, a reverência aos antepassados consolidou a noção de que o tempo não é uma sucessão de instantes isolados, mas uma corrente contínua, em que o ontem toca no hoje e projeta-se no amanhã. As experiências trazidas pelos entes do passado possibilitaram à existência presente maior conforto, sabedoria e resiliência. Foram as cicatrizes dos que vieram antes que abriram os caminhos pelos quais hoje trilhamos.

A percepção da finitude despertou a necessidade de permanência simbólica, fosse por meio da memória, da herança ou da transcendência espiritual. O humano, ao reconhecer sua impermanência biológica, inventou a eternidade cultural.

Muito mais do que simples rituais metafísicos, a meditação sobre a personalidade e os acontecimentos passados desencadeou na espécie humana o desejo pelas possibilidades. Dessa forma, a construção do futuro está, indissociavelmente, ligada aos fatos passados, constituindo-se no alicerce do presente e na base do que ainda virá.

Esse elo com o tempo, no entanto, parece cada vez mais tênue na contemporaneidade. Deixados de lado este e outros aspectos próprios da antropologia cultural e dando um salto até os dias atuais — particularmente no contexto da sociedade brasileira —, o que se percebe, à primeira vista, é que o encurtamento de nossa memória, seja pela insuficiência de informação, seja pelo excesso dela, o que tem transformado cada um de nós em seres inertes, entorpecidos pela velocidade dos acontecimentos, pela espuma das narrativas efêmeras e pela desinformação crônica.

Vivemos a era da amnésia seletiva. O desprezo pelas experiências do passado nos tornou reféns de nós mesmos, entregues a um estado de letargia permanente. Já não nos indignamos com o absurdo cotidiano, aceitando de bom grado o prato frio que nos servem — por vezes requentado com promessas quebradas e discursos desgastados. É a anestesia das consciências, o colapso da responsabilidade histórica.

É justamente essa sociedade, dita moderna, que encara a morte com assepsia total — limpa, distante, institucionalizada — a mesma que vai apodrecendo a céu aberto, moralmente putrefata, condenada, como Prometeu, a ter o fígado (a índole) devorado, diariamente, pelos abutres do poder, do marketing ideológico, da manipulação semântica.

O afastamento simbólico da morte, aliado ao desprezo pelas lições dos mortos, resultou numa geração que não sabe de onde veio, nem para onde vai. Uma sociedade que ri de sua própria decadência, que chama de progresso aquilo que é corrosão de seus pilares mais profundos, que celebra o presente como se o passado fosse lixo e o futuro, irrelevante. Assim, abandonamos nossos mortos e, com eles, enterramos nossa própria consciência.

 

A frase que foi pronunciada:
“Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência.”
Karl Marx

Retrato de Karl Marx (1818–1883). Foto: John Jabez Edwin Mayall – Instituto Internacional de História Social.

 

História de Brasília
Intransitáveis, os corredores dos blocos do IAPC. Sujeira excessiva e ninguém tem mais esperança de limpeza. Agora, que uma firma estará encarregada do serviço, pode ser que melhore. (Publicada em 5/5/1962)

Azar de quem acredita

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Charge do Orlando

 

Ao observar os dados divulgados tanto por parte da imprensa como em estudos elaborados da Receita Federal e do Ministério da Fazenda, já é possível tecer uma análise mais profunda e sombria do cenário atual e do que pode estar por vir no caso da liberação recente dos jogos de azar, cassinos e bets em nosso país. E não foi por falta de aviso. Logo de cara, vemos que nada menos do que R$ 68,2 bilhões foram gastos em apostas online em 2023, com R$ 23,9 bilhões de prejuízo líquido para os apostadores. Isso indica que, para cada real apostado, uma parte considerável é sistematicamente perdida, configurando um mecanismo de drenagem financeira da população.

Enquanto isso, o governo, que nada perde, prevê arrecadar cerca de R$ 12 bilhões/ano com a tributação do setor, um valor que pode parecer significativo, mas representa apenas uma fração do dinheiro movimentado e que, obviamente, não compensa os danos sociais causados. O crescimento de 71% em relação a 2020 é alarmante, mostrando que o setor se expande rapidamente, sem ainda haver estrutura legal, institucional ou tecnológica robusta para controlá-lo adequadamente, ao mesmo tempo em que o monstro vai crescendo.

Crimes financeiros e lavagem de dinheiro já são realidades nesse setor. Criminosos usam os sites de apostas como meio de esquentar dinheiro ilícito, utilizando dados falsos ou de “laranjas” para apostar e resgatar valores que passam a ter aparência legal. Dado suficiente para tornar fácil a previsão dos malefícios que ainda estão por vir sobre a sociedade brasileira. Se a operação dos cassinos online continuar como está, sem uma regulação firme e fiscalização efetiva, é possível prever um aumento significativo de vários impactos negativos como é o caso da explosão do endividamento pessoal e das famílias, sobretudo as mais pobres. Pessoas de baixa renda são, especialmente, vulneráveis à promessa de lucro fácil. A tendência é que o número de endividados, inadimplentes e até suicídios ligados ao vício em jogos cresça exponencialmente. O vício em jogos (ludomania) já é classificado como transtorno psiquiátrico e sua prevalência tende a subir com a facilidade de acesso aos aplicativos de apostas.

Ao aumentar a lavagem de dinheiro e crimes cibernéticos, outras consequências surgem em seguida. As plataformas de apostas se tornam canais eficazes para movimentações financeiras ilegais, sobretudo em um país onde o combate a crimes digitais ainda é precário, para dizer o mínimo. Além disso a criminalidade organizada pode se infiltrar ainda mais nesses sistemas, financiando outras atividades como tráfico, corrupção e fraudes, fortalecendo sobremaneira o crime organizado. Também a evasão de capitais surge como um grande problema. A maioria dos sites de apostas online tem sede fora do Brasil. Mesmo com tributação, boa parte do dinheiro apostado é enviada ao exterior, fugindo do controle do Estado e reduzindo o impacto positivo na economia nacional.

A desestruturação de núcleos familiares e o aumento da desigualdade se elevam na mesma proporção em que avançam os jogos online. Não é preciso lembrar que o vício em apostas afeta, diretamente, o convívio familiar, com casos de desintegração doméstica, violência, abandono e negligência. O jogo transforma o desespero em lucro para as plataformas, pois, quanto mais vulnerável o cidadão, maior a exploração. Estamos presenciando a formação de uma nova geração de apostadores, já que a publicidade de jogos é altamente direcionada aos jovens, utilizando influenciadores digitais e esportistas. A cultura do “apostar para ganhar fácil” já está sendo normalizada em nosso país. A longo prazo, podemos dizer que essa prática poderá criar uma geração de brasileiros que não confia no trabalho formal, mas sim na sorte e na especulação.

A continuidade da operação de cassinos online no Brasil, sem um marco regulatório firme e medidas rigorosas de controle, tende a beneficiar apenas as empresas de apostas, em grande parte, sediadas no exterior, e o próprio Estado, por meio da arrecadação, mas sem necessariamente resolver os danos sociais gerados. A sociedade, por outro lado, absorve o pior: vício, ruína financeira, violência, evasão de recursos e degradação de valores sociais. O jogo, legalizado ou não, precisa deixar de ser tratado como entretenimento inofensivo e passar a ser encarado como uma questão de saúde pública e de segurança nacional.

A CPI das Apostas Esportivas (CPI das Bets) foi criada com o objetivo de investigar manipulações de resultados em jogos de futebol brasileiro e o envolvimento de casas de apostas online nesse processo. No entanto, seu desfecho foi decepcionante, e isso revela um sintoma ainda mais grave: o poder de influência do dinheiro do jogo sobre as instituições democráticas. Ou seja: azar de quem acredita.

 

 

A frase que foi pronunciada:

“Indução ao erro dos seguidores, que acreditam que estão sendo feitas apostas reais – e não meras simulações”.

No relatório final da CPI das Bets

Relatora da CPIBETS, senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) e senador Izalci Lucas (PL-DF) exibem relatório. (Foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

 

História de Brasília

Sobre essas faixas de travessia, há uma observação. Se as linhas fossem em diagonal seriam vistas a maior distância. (Publicada em 05.05.1962)

Ainda há justiça em Berlim

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Foto: reprodução da internet

 

          Na frase: “ainda há juízes em Berlim”, o que se tem, em forma de narrativa poética de Andrieux, é um acontecimento ocorrido no século XVIII, na Prússia do rei ou déspota esclarecido, Frederico II, conhecido como “o Grande” (Friedrich der Grosse). Naquela ocasião, o rei decidiu edificar um palácio de verão na cidade de Potsdam, nas proximidades de Berlim, junto a uma colina onde existia, já há tempo, um moinho de vento, conhecido como o moinho de Sans-Souci, designação essa também dada ao novo palácio real.

          Conta-se que, quando Frederico II resolveu fazer obras de ampliação no palácio, o moinho parecia, com seu formato simples e rude, manchar a paisagem, impedindo que a referida obra prosseguisse. O rei, a conselho dos arquitetos, decidiu adquiri-lo, esbarrando, contudo, na inabalável recusa do moleiro de se mudar do local. O moleiro invocou o fato de que tanto ele, quanto seu avô, pai ali falecido, mas também os seus filhos, sempre residiram naquele local. Diante de tal obstinação, Frederico seguiu insistindo, tendo chegado a sugerir ao moleiro, em tom de ameaça, que, se assim quisesse, poderia confiscar o moinho e as respectivas terras, inclusive, sem indenização. Nada disso demoveu o corajoso moleiro, que retrucou em seguida, lembrando que “ainda existiriam juízes em Berlim”.

         Diante dessa resposta e da confiança do moleiro na justiça, Frederico II recuou e, mesmo tendo ampliado o palácio, respeitou os limites de terra do moinho, que até hoje se encontra no local. A célebre frase “ainda há juízes em Berlim” tornou-se, assim, um símbolo universal da resistência do cidadão comum contra os abusos dos poderosos no poder.

         Ao ser proferida por um simples moleiro, diante do rei Frederico II da Prússia, ela encarna, como nenhuma outra, o ideal de que a justiça deve estar acima da vontade dos poderosos — mesmo daqueles que ocupam o topo da hierarquia do Estado.

         Essa história, carregada de dignidade e firmeza moral, ecoa, profundamente, nos tempos atuais, especialmente em sociedades onde o chamado Estado Democrático de Direito parece se curvar aos interesses de grupos ou instituições hegemônicas. No Brasil contemporâneo, a invocação constante do Estado Democrático de Direito tornou-se, paradoxalmente, tanto uma arma de defesa quanto um instrumento de imposição.

         Vemos frequentemente autoridades e instituições recorrerem a esse conceito para justificar decisões controversas, que nem sempre encontram respaldo na Constituição ou no clamor popular. Quem deveria ser o guardião imparcial da Carta Magna é, muitas vezes, percebido pela população como um protagonista político, ora silenciando, ora amplificando determinadas vozes, conforme as conveniências políticas do momento.

          A imagem da Justiça — representada pela balança e pela venda nos olhos — parece, em muitos momentos, desfocada, seletiva, permeável à pressão e distante do cidadão comum. Há uma crescente percepção de que o Estado de Direito está sendo reinterpretado para servir finalidades particulares, o que enfraquece sua legitimidade e gera ceticismo em boa parte da população. No lugar da imparcialidade, instala-se o espetáculo jurídico; no lugar do devido processo legal, surgem medidas excepcionais; e, no lugar do debate público transparente, há decisões monocráticas com efeitos generalizados.

         Contudo, a esperança não morreu. Muitos brasileiros, à semelhança do moleiro prussiano, ainda acreditam que pode haver juízes em Berlim — ou mais perto do que se imagina. Juízes que resistam à tentação de se dobrarem ao poder político, à opinião pública inflamada ou à pressão de elites. Juízes que entendam que a força de uma democracia reside justamente na proteção dos direitos, mesmo (ou sobretudo) daqueles que são impopulares ou minoritários. Juízes que saibam que aplicar a Constituição não é interpretá-la ao sabor das conveniências, mas obedecê-la mesmo quando isso contraria interesses poderosos.

         A frase “ainda há juízes em Berlim” nos remete, portanto, a um ideal de Justiça que transcende o tempo e o espaço, e que precisa ser resgatado com urgência no Brasil atual. Pois sem a confiança de que haverá quem nos ouça diante da arbitrariedade, o próprio alicerce da democracia — a crença na lei como limite do poder — desmorona. É necessário que o Estado Democrático de Direito deixe de ser um mantra retórico e volte a ser uma prática viva, transparente, acessível e respeitosa da Constituição.

         Mesmo na undécima hora, a sociedade brasileira anseia e clama por justiça verdadeira — e por juízes que, como em Berlim, estejam à altura desse chamado histórico. O Estado Democrático de Direito é aquele em que todas as autoridades — inclusive as mais altas — estão submetidas à lei.

 

 

A frase que foi pronunciada:

“Não roubar,pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública.”

Ulysses Guimarães

Foto: agenciabrasil.ebc.com.br

 

História de Brasília

O serviço de Trânsito atendeu prontamente a uma sugestão nossa, e os alunos da Caixa Econômica terão um guarda para ajuda-los na travessia da W-3. É preciso apenas que procurem as faixas de travessia. (Publicada em 05.05.1962)

A força da novilíngua

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Charge do Schmoch para a Revista Oeste

Em termos médicos, a anemia (CID 10) é uma condição patológica em que o corpo apresenta uma sensível redução na capacidade de transportar oxigênio para o organismo. Geralmente, esse fator ocorre por falta de hemoglobina ou de glóbulos vermelhos. Os sintomas dessa condição incluem fraqueza, lentidão, apatia e baixa resistência — características que, levadas para o campo político e institucional do momento, podem descrever, com certa clareza médica, um país com instituições enfraquecidas, democracia esvaziada e, sobretudo, pouca capacidade de reação da sociedade civil.

No campo da ciência política, esse termo tem sido cada vez mais utilizado, principalmente, quando se verifica um declínio acelerado do país em todas as áreas, na economia, e com todos seus desdobramentos para a sociedade, que a tudo assiste com um misto de medo e impassividade, são os primeiros passos para uma outra enfermidade política, dessa vez com a grafia parecida: a anomia, conforme descrito tanto no pensamento de Durkheim quanto de Merton, “explora a desintegração social e as consequências para o comportamento individual” ou seja, sem lei, sem normas.

Anemia institucional incide em todo o aparelho de Estado, com órgãos de controle e equilíbrio de poder (como o Legislativo e o Judiciário) apresentam baixa vitalidade e autonomia, funcionando de forma pouco responsiva ou servil ao Executivo ou ao STF. Isso é um fato. O desequilíbrio dos Poderes é outro. Por sua vez, a anemia cívica, como demonstrada pela sociedade civil, apresenta um quadro de apatia ou cansaço, com baixo engajamento dos cidadãos, talvez por descrença na eficácia das instituições ou, simplesmente, por medo da repressão simbólica e legal. A anemia democrática vem a seguir, com o processo democrático perdendo sua substância, o pluralismo de ideias sendo sufocado. E aí por diante.

Daí, decorrem os processos de imposição de regras do novo jogo político, todos orientados para favorecer um projeto de poder. Nessa altura dos acontecimentos, a Constituição é substituída por uma novíssima interpretação, uma “novilíngua” com sentido próprio.

Como ocorre com a instalação de toda doença perigosa, a anemia do Estado irá nos conduzir a um fechamento político lento e gradual. Diferente da expressão ecoada pela ditadura militar, que falava em redemocratização “lenta, gradual e segura”, e que visava repor o país nos trilhos da normalidade política, o lento fechamento, que se assiste agora, nos leva no caminho inverso, em direção, talvez, a uma espécie de comunismo dos anos cinquenta.

Essa crítica vem ganhando força entre analistas políticos, especialmente da direita e do centro-direita, diante de certos movimentos de concentração de poder. O papel do Executivo, no caso do governo Lula, mostra em que direção vamos. O governo tem buscado centralizar decisões, principalmente, por meio de medidas provisórias e uso intenso de decretos. Paralelo a esse novo e obsoleto modelo, vamos presenciando a ocupação de cargos-chave por figuras ideologicamente alinhadas (ex: Fundação Palmares, Ancine, agências reguladoras, Petrobras) é vista por críticos como efetivo aparelhamento do Estado.

A reforma econômica e social segue com seu conhecido viés estatizante. Sem estatais, a existência de grupos políticos dessa natureza ideológica é inviável. A reindustrialização, promovida via BNDES e estatais pode ser vista como um retorno à política desenvolvimentista, típica dos modelos falidos de governos passados. A retomada de programas como o PAC, com pouca transparência na execução em alguns casos, demonstra esse modelo estatista. As narrativas maniqueístas passam a fazer parte do cotidiano desses grupos. Veja o caso de declarações de autoridades dos aliados que tratam a oposição como “inimigos da democracia” ou “terroristas” ou, simplesmente, extrema-direita, indicando assim um endurecimento discursivo.

Nesse banzé caboclo, o papel do STF é fundamental como “poder garantidor”, expandido sua atuação. O Supremo tem exercido um papel central na mediação da política, mesclando competências do Legislativo em assuntos como criminalização de condutas, decisões sobre tributos, aborto, drogas e outros. Ministros do Supremo assumiram protagonismo inédito, especialmente em temas ligados à segurança institucional, desinformação e censura.

No  caso do relacionamento estreito entre o Executivo e o Judiciário, o que se observa é a formação de uma espécie de consórcio simbiótico colocando o sistema de freios e contrapesos em perigo. A união desses poderes como está é um fenômeno, para dizer o mínimo, atípico e preocupante. Na sua origem, a atual crise institucional tem, na indicação e escolha de ministros para a alta Corte, seu fator primário e fundamental, trazendo, para dentro do judiciário, os ventos malcheirosos de ideologias políticas.

 

 

A frase que foi pronunciada:

Numa ditadura, não daria para fazer uma passeata pela democracia. Na democracia, você pode fazer uma passeata pedindo a ditadura.

Mario Sergio Cortella

 

 

História de Brasília

Isso quer dizer: há professôras que alugaram seus apartamentos e foram morar coletivamente com outras companheiras. Há professôras que casaram, residem no apartamento do esposo e alugaram o apartamento que lhe foi destinado. (Publicada em 05.05.1962)

Vitória de Pirro moderna

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         Dados levantados pela inteligência ocidental dão conta de que, nesses após três anos do início da invasão à Ucrânia, a Rússia já contabiliza equação militar negativa cada vez mais insustentável. Segundo esses dados, o país vem perdendo, em média, 1.135 soldados, mortos ou feridos diariamente, tudo isso para conquistar apenas 2,3 quilômetros quadrados de território – uma área irrisória. Analistas militares calculam ainda que, no ritmo atual de avanço, a Rússia levaria, pelo menos, 91 anos para criar a zona tampão segura proposta por alguns militares russos. A Rússia, diz esse relatório, está tomando território, mas a um custo insustentavelmente alto.

         Diante de mais esse desastre comandado por Putin, seu futuro político vai se tornando cada vez mais incerto e tenebroso. De posse desses dados, o que se tem em mãos revela uma operação militar que, além de moralmente condenável, é estrategicamente desastrosa para a Rússia, sobretudo, para sua juventude. Um olhar para três frentes (militar, política interna russa e geopolítica global) mostra a Rússia, sob a liderança de Putin, cada vez mais atolada nas areias movediças do destino que traçou para si mesmo. No cenário militar, já se assiste a lógica da exaustão por tantas baixas, atualmente em mais de 400 mil por ano. Isso é insustentável até mesmo para uma potência como a Rússia, que mobilizou sua população em ondas sucessivas e endureceu suas leis contra a dissidência e deserção. Os ganhos territoriais (2,3 km² por dia) são, taticamente, irrelevantes, quando comparados com o custo humano, material e psicológico. A estimativa de 91 anos para completar uma zona tampão mostra o caráter fantasioso daquela meta. Além disso, a moral das tropas está provavelmente degradada; as reservas de munições, equipamentos modernos e oficiais experientes estão se esgotando e a Ucrânia, embora exaurida, tem acesso crescente à tecnologia militar ocidental de ponta, o que tende a reequilibrar o conflito no campo de batalha.

          A guerra entra em um impasse de desgaste onde a Rússia, apesar de avanços localizados, está cavando sua própria exaustão estratégica. Também no cenário político Interno, o poder de Putin torna-se cada vez mais instável e incerto. Vladimir Putin, como é sabido, sustenta seu poder sobre três pilares: repressão interna e controle da narrativa, aparato de segurança leal (FSB, militares, Guarda Nacional) e percepção de força e grandeza geopolítica. Por outro lado, entende-se que a guerra na Ucrânia corroeu parte ou boa parte desses pilares. Internamente, a repressão já atinge o ponto de retorno: quando o medo vira ódio silencioso e regimes como esses entram em colapso. As Forças Armadas estão desmoralizadas, com generais eliminados, prisões por corrupção e comandantes mercenários (como Prigozhin), mortos em circunstâncias pra lá de suspeitas. Dessa forma, o fracasso dessa guerra destrói a narrativa imperial que Putin construiu desde a Crimeia (2014). Muitos acreditam que o futuro político de Putin está ameaçado, embora, não imediatamente, pois ele ainda mantém o poder, embora enfrente rachaduras entre elites (oligarcas e serviços secretos).

         Há sinais de desgaste entre as bases sociais que sustentavam sua popularidade. O medo de uma “primavera russa”, embora remoto, já preocupa o Kremlin — vide o aumento de investimentos em ciberpropaganda, censura e repressão legal. Ninguém contesta o fato de que, em termos geopolíticos, há um isolamento e colapso russo, com aquele país, em termos de diplomacia cada vez mais desgastados, mesmo entre antigos aliados. A guerra levou a Rússia a se tornar cada vez mais dependente da China, o que a rebaixa, de potência autônoma a satélite estratégico. Sancionada economicamente, com acesso restrito a tecnologias críticas e mercados ocidentais, a Rússia de Putin vai provando de seu próprio veneno. Se Putin sobreviver politicamente, será como líder de uma Rússia empobrecida, armada, ressentida e dependente, o que é perigoso para o mundo. Mas se cair, abre-se o risco de vácuo de poder com disputas internas violentas e fragmentação da federação russa ou ascensão de um regime ainda mais autoritário. O mundo deve colocar as barbas de molho, pois seu arsenal atômico assustador pode vir a ser usado como demonstração de força derradeira.

 

 

A frase que foi pronunciada:

“A política é quase tão excitante como a guerra e não menos perigosa. Na guerra a pessoa só pode ser morta uma vez, mas na política diversas vezes.”

Winston Churchill

Winston Churchill. Foto: wikipedia.org

 

História de Brasília

A solidariedade das  professôras aos invasores do BNDE não deveria ser traduzida em greve , mas sim em solidariedade efetiva. Exemplo: melhor aproveitamento dos apartamentos já entregues, para que todos sejam atendidos. (Publicada em 04.05.1962)

Males da burocracia

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Foto: Sérgio Lima/Poder360 – 2.out.2019

 

Um pouco mais de 1,4 milhão de pessoas exercem hoje, em nosso país e de forma regular, a atividade de advocacia. Isso dá uma média de um advogado para cada 140 brasileiros. Trata-se de uma das maiores proporções de advogados por habitante do planeta. Talvez perca para a populosa Índia, que conta hoje com aproximadamente 2 milhões de causídicos. Esse fenômeno pode fornecer uma pista para entendermos parte da própria dinâmica das relações sociais em nosso país. Talvez, por isso, milhões e milhões de processos, de todos os tipos e de todos os tempos, acumulam-se hoje nos diversos escaninhos do Estado. Muitos desses processos irão ser deixados às calêndulas, extintos por decurso de prazos e outros males da burocracia.

Ocorre que, no meio desse baú, existem também aqueles processos, cujos protagonistas são servidos pelos melhores escritórios da praça, onde os honorários justificam a defesa a qualquer custo. Esses, obviamente, chegam a termo em tempo recorde e sempre em atendimento à nobre defesa. Com isso, também,são formados nichos de escritórios de advocacia, cujo esplendor econômico advém honorários impublicáveis.

Numa situação dessa natureza, boa parte da dinâmica das relações sociais acaba sendo alterada, pois a justiça passa a ser exercida por um pendor econômico, atendendo assim àqueles que estão acordados, ou seja, com boa retaguarda, deixando a maioria que dorme, ou seja, aquela que apenas sonha com justiça, deixada na beira da estrada.

Essa constatação lança luz sobre uma realidade complexa e desconcertante do sistema jurídico brasileiro: a impressionante quantidade de advogados e a enorme judicialização da vida social, em contraste com o precário acesso à justiça para a maioria da população. A proporção de advogados e a excessiva judicialização de tudo é um fenômeno nosso. Essa realidade mostra uma cara do Brasil onde a sociedade é fortemente judicializada. Não se trata aqui de justiça, mas de querelas judiciais. Isso pode indicar tanto um elevado grau de litígio nas relações sociais, quanto uma estrutura institucional que empurra os conflitos para a via judicial por falta de soluções administrativas ou alternativas extrajudiciais eficazes (como a mediação ou conciliação).

A justiça de baixo clero pouco interessa aos advogados. Pois hiper judicialização não significa, no entanto, acesso efetivo à justiça. Pelo contrário: revela uma disputa desigual por esse acesso. A massa de processos que se acumula nos escaninhos do Judiciário, muitos dos quais fadados à prescrição, mostra um sistema lento, sobrecarregado e seletivo. Existe, de fato, uma desigualdade no acesso à Justiça em nosso país, embora tenhamos uma das justiças mais caras do planeta.

Temos, do ponto de vista da sociologia, uma sociedade onde uma minoria está desperta e atuante, contra uma maioria que dorme, formada por cidadãos comuns, sem recursos ou representatividade, cujos pleitos se perdem na morosidade kafkiana da máquina judiciária. “Dormientibus non succurrit jus”, diz a máxima latina do Direito.

Aqueles, amparados por escritórios caros e especializados, obtêm decisões rápidas, estratégicas e, por vezes, moldadas à conveniência de seus interesses econômicos ou políticos. Nada disso é novidade entre nós, embora continue sendo uma prática absurda. Esse retrato espelha ainda um fenômeno mais amplo: a mercantilização da justiça, em que os direitos tornam-se proporcionalmente acessíveis à capacidade de pagamento dos indivíduos.

A equidade, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, é fragilizada, se não ignorada. Com isso, temos a violência e corrupção como pano de fundo de um Brasil adoecido. Essa análise se torna ainda mais crítica ao ser contextualizada com dois traços estruturantes da sociedade brasileira: a violência e a corrupção endêmica. Somos, de fato, uma das sociedades mais violentas do mundo, com taxas elevadas de homicídios, desigualdade social aguda e uma sensação crônica de impunidade. A corrupção, disseminada em todos os níveis — do poder executivo aos pequenos órgãos administrativos —, distorce o funcionamento das instituições, inclusive do Judiciário. Quando as decisões judiciais passam a ser percebidas (ou de fato são), orientadas por interesses econômicos, políticos ou corporativos, isso mina a confiança pública no sistema e alimenta o descrédito da lei. Temos advogados de mais e justiça escassa.

Essa justiça seletiva reforça a desigualdade, perpetua a violência estrutural e institucional, e gera uma sensação de orfandade cívica para grande parte da população. Em vez de promover a pacificação social, o sistema acaba sendo um fator de perpetuação do conflito.

 

A frase que foi pronunciada:
“A burocracia dá à luz a si mesma e depois espera benefícios de maternidade.”
Dale Dauten

Dale Dauten. Foto: dauten.com

História de Brasília
O DTUI está com uma mostra excelente do que está fazendo, e do que não pode fazer. Não está, entretanto, ao seu alcance, o que é mais essencial: a compra de cabos para instalar novos aparelhos. (Publicada em 04.05.1962)

Erosão

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Ilustração: jusbrasil.com

 

Você parece estar perguntando se organizações criminosas brasileiras como o PCC (Primeiro Comando da Capital), o CV (Comando Vermelho) e outras poderiam vir a se constituir, um dia, como organizações paramilitares ou até políticas — talvez nos moldes de grupos armados ou milícias que, em outros contextos, assumiram papéis de poder institucional ou regional. De fato, isso já ocorre. Organizações como o PCC e o CV, embora não sejam paramilitares no sentido clássico (com ideologia política explícita ou objetivo de tomada formal do poder), possuem, como é sabido, estrutura hierárquica, armamento e controle territorial em favelas e periferias urbanas, tudo muito similar às milícias ou grupos insurgentes em outros países. Afinal, já controlam comunidades inteiras, impõem regras, aplicam “justiça”, cobram impostos (“arrego”) e negociam com políticos e policiais. Em alguns casos, como em partes da Amazônia ou do Nordeste, já há controle de rotas logísticas e até pactos locais de governança informal com elites corruptas ou agentes do Estado. Pior é: e se um dia vierem a se transformar em partidos ou forças políticas oficiais? Financiar candidatos, isso eles já fazem. Mas tudo isso vai depender do grau de deterioração do Estado democrático e do pacto social.

Diferente das FARC na Colômbia ou do Hezbollah no Líbano (que têm discursos ideológicos e legitimidade entre parte da população), o PCC e o CV não possuem, por enquanto, um discurso político claro. São essencialmente organizações voltadas ao lucro, por meio do narcotráfico, extorsão, roubo e outras modalidades de crime. No entanto, não se pode negar que há um histórico antigo de alianças com políticos locais, especialmente em regiões onde o Estado é ausente, e isso, obviamente, pode se intensificar com o tempo. Agora, caso o Estado brasileiro entre em um processo de colapso institucional severo (sendo a corrupção a indutora desse colapso), ou haja um processo extremo de fragmentação federativa, é possível  que esses grupos venham a se institucionalizar, como máfias que se tornaram partidos ou milícias que viraram governos locais. Tudo vai depender da saúde institucional e ética dos poderes. Mas em relação às milícias do Rio, vários indícios e evidências mostram que já têm um pé no mundo político, com vereadores, deputados e até governadores ligados a essas redes. O avanço delas dentro do Estado é mais claro do que o das facções tradicionais.

Nesse sentido, as milícias são, por enquanto, o elo mais visível entre o crime organizado e o poder político institucional no Brasil. Verdade seja dita, o PCC e CV já operam como Proto-Estados paralelos em algumas áreas. A transformação em uma força paramilitar explícita ou política organizada pode ser improvável a curto prazo, mas não inconcebível a longo prazo, especialmente se o que assistimos no dia levar-nos ao colapso institucional do Estado. No entanto, é preciso aceitar que o futuro urbano de grandes metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo diante do fortalecimento do crime organizado é, para dizer o mínimo, nebuloso.

Em São Paulo, o PCC atua com baixa visibilidade e alta organização, quase como uma empresa clandestina com cadeia logística e disciplina interna. O Estado, praticamente “coexiste” com ele. No Grande Rio, há três forças paralelas disputando território: CV, TCP (Terceiro Comando Puro) e milícias armadas ligadas a ex-policiais, que cobram taxa de segurança, vendem gás, internet e fazem justiça à margem da lei. Caso o crime organizado consiga penetrar nas estruturas políticas locais, como vereadores, prefeituras, associações de bairro, a coisa está feita. Pois eles podem facilmente influenciar decisões de urbanização, como transporte, serviços públicos. Além, é claro, de controlar o “voto de cabresto” nas favelas e periferias. O cenário futuro promete o aumento da favelização e de “zonas autônomas” de fato, que são áreas onde a polícia não entra ou entra apenas com operações de guerra.

Entra, ainda nesse rol de infortúnios, a questão da liberação dos jogos de azar, que pode facilitar ao máximo a lavagem de dinheiro. Mas isso depende também do enforcement do Estado ou sua capacidade de ações e procedimentos legais para garantia das leis. Facções e milícias já atuam em bicheiros, caça-níqueis, máquinas ilegais e apostas online. E com a legalização dos jogos físicos, passaram a criar casas de apostas como “fachadas”,  onde declaram lucros fictícios em jogos de baixa fiscalização. Com isso, misturam dinheiro limpo e sujo, dificultando rastreamento. Além disso, se utilizam de “laranjas” e empresas de fachada para abrir cassinos, bingos e plataformas online. É preciso evitar a todo custo a transformação do crime em uma espécie de “capitalismo criminoso sofisticado”. Na questão dos jogos de azar, onde os lucros são bilionários, a corrupção na máquina do Estado favorece, ainda mais o crime. A verdade é que foi dada liberação dos jogos de azar sem uma devida regulação forte. Seria necessário empreender uma colaboração direta entre Receita Federal, COAF, Polícia Federal, MPF e bancos. O que não podemos negar é que cidades como Rio de Janeiro e São Paulo enfrentam uma erosão progressiva da autoridade estatal em muitos territórios populares.

 

A frase que foi pronunciada: 

“Uns venceram por seus crimes, outros fracassaram por suas virtudes.”

William Shakespeare

Imagem: reprodução da internet

 

HISTÓRIA DE BRASÍLIA

Os pontos de taxis na W-3 estão tomando espaço demais, além do necessário. É um abuso, porque enquanto sobram 10 vagas em cada posto, os carros particulares têm que estacionar longe demais, e às vêzes não há local. (Publicada 04.05.1962)

A dormência moral de um povo: da indignação à apatia

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Foto: veja.abril.com

Houve um tempo em que a corrupção, ao vir à tona, ainda provocava náusea. O escândalo, quando exposto, gerava, no brasileiro médio, um sentimento de traição – como se houvesse sido pessoalmente lesado por um pacto quebrado entre governantes e governados. Em 16 de agosto de 1992, bastou que a imprensa revelasse um esquema de propinas envolvendo o presidente Fernando Collor para que se assistisse a um espetáculo coletivo de rejeição moral: Collor conclamou que o povo brasileiro se manifestasse a favor de seu mandato e vestisse verde e amarelo. O povo, envergando preto, saiu às ruas em passeata fúnebre pela democracia. O símbolo máximo daquela indignação foi o esvaziamento simbólico do Palácio da Alvorada – móveis retirados e expostos no jardim como um inventário público da queda. Uma imagem poderosa o suficiente para gravar-se no imaginário nacional. A moral ainda era uma força política.

Há algo de profundamente revelador no modo como uma sociedade reage — ou não reage — ao seu próprio espólio. A história recente do Brasil oferece um contraste gritante entre duas épocas e dois escândalos: de um lado, a comoção nacional provocada por um carro popular — um Fiat Elba — e por uma reforma paisagística na Casa da Dinda; de outro, o silêncio espesso diante do furto sistemático de bilhões de reais do Instituto Nacional do Seguro Social, o último reduto da esperança para milhões de brasileiros que ainda acreditam envelhecer com dignidade.

Em 1992, Fernando Collor foi derrubado não apenas por seus atos, mas pela capacidade de indignação de um povo que, até então, ainda parecia reconhecer a gravidade simbólica do abuso. A apreensão do Fiat Elba, cuja compra fora vinculada ao tesoureiro de campanha Paulo César Farias, funcionou como um estopim moral. Comparemos esse episódio a outro, recente, cujas proporções financeiras fazem do escândalo Collor um delito pueril: a fraude desvendada pela Operação Sem Desconto, que expôs um rombo de R$ 6,3 bilhões nos cofres do INSS. Sim, bilhões — com “b”. O equivalente a dezenas de milhares de Fiat Elbas, saqueados com método e precisão ao longo de cinco anos.

O critério de comparação já não serve, pois perdeu sua escala. A régua moral com que se mediam os escândalos do passado tornou-se obsoleta diante da magnitude abissal dos saques recentes. É preciso substituir o referencial: já não estamos lidando com desvios pontuais, mas com uma pilhagem institucionalizada que se equipara — se somados os escândalos do mensalão, petrolão e INSS — à drenagem de ouro perpetrada pela Coroa Portuguesa ao longo de três séculos de colonização. A corrupção contemporânea não apenas rivaliza com o saque colonial — ela o atualiza, o automatiza e o blinda sob o verniz da legalidade republicana.

O povo brasileiro, submetido há décadas a uma repetição incessante de escândalos, tornou-se refratário ao espanto. A corrupção deixou de ser a exceção e passou a ser a regra – e como toda regra internalizada, deixou de provocar indignação. O cidadão comum já não acredita na eficácia da denúncia, nem na punição dos culpados. A desconfiança não gera revolta, mas apatia.

Esse fenômeno tem nome: dessensibilização moral. É o processo pelo qual a exposição contínua ao escândalo mina a capacidade de julgamento ético. Em contextos de guerra ou de catástrofes humanitárias, esse entorpecimento psíquico costuma ser estudado sob o nome de “fadiga de compaixão”. No Brasil, o que se observa é uma “fadiga de indignação”: o sujeito já não reage ao grotesco porque aprendeu a conviver com ele. E nisso, reside o triunfo dos maus: não na vitória ideológica, mas na exaustão emocional do adversário. O que se vê é uma espécie de coma cívico, uma erosão progressiva da sensibilidade coletiva. O que antes indignava, agora apenas arranca um muxoxo resignado. A corrupção, em sua escala industrial, já não assusta — ela embota. Torna-se paisagem. O brasileiro, educado pela repetição da tragédia, aprendeu a viver entre os escombros como quem mora ao lado de um lixão: com as janelas fechadas e o nariz acostumado.

É preciso reconhecer que o golpe não é apenas financeiro; é simbólico. Se o confisco das poupanças em 1990 subtraiu, da classe média, um pedaço de sua autonomia, o assalto ao INSS hoje é mais perverso: rouba dos pobres a promessa do futuro. A aposentadoria, que deveria ser o amparo final de uma vida inteira de trabalho, tornou-se mais um jogo de azar num Estado que já não protege, apenas cobra.

Mas o que se torna verdadeiramente insuportável é o silêncio. A ausência de qualquer consequência política, a continuidade da máquina como se nada houvesse ocorrido, a blindagem dos envolvidos, a indiferença midiática — tudo isso compõe um retrato preciso do Brasil de hoje. Um país onde o escândalo perdeu o escândalo. Onde até a raiva foi domesticada.

 

 

A frase que foi pronunciada:

“Depois de tanto tempo, podemos juntos, desabafar”

Fernando Collor de Mello

Fernando Collor de Mello. Foto: VEJA/Dedoc

 

História de Brasília

O mesmo poderá ser feito na W1, no bambolê da Igrejinha onde quem ajuda as crianças é um motorista de idade, de cabeça branca, que dirige um Impala. Quando êle está no ponto, é quem controla o trânsito para defender as crianças. (Publicada 04.05.1962)

Brasília e o sonho que persiste no concreto

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Centro de Brasília: Foto: reprodução da internet

 

Há cidades que apenas crescem, e há cidades que carregam consigo a vocação de pensar o mundo. Brasília, com todas as suas contradições, pertence ao segundo grupo. Desde o primeiro risco no papel de Lucio Costa até a última curva branca traçada por Niemeyer, a capital federal jamais foi apenas um conjunto de edifícios — foi ideia, gesto simbólico, tentativa. Agora, mais uma vez, ela se prepara para sediar uma conversa sobre o futuro. Nessa última terça-feira (27), o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-DF) foi palco do lançamento da 4ª edição do Fórum Mundial Niemeyer, um evento que convidou arquitetos, urbanistas, engenheiros, juristas e pensadores a discutirem os rumos da cidade contemporânea.

A proposta não poderia encontrar cenário mais sugestivo. Brasília é, ao mesmo tempo, modelo e advertência. Seu desenho monumental, pensado para projetar a racionalidade administrativa do país, convive com os desafios reais de uma metrópole desigual e fragmentada. Ela inspira tanto quanto desconcerta. Talvez por isso, a escolha da capital para dar início às reflexões do Fórum carrega mais do que valor simbólico — é um convite a revisitar as promessas do passado à luz das urgências do presente.

Nesta edição, o tema gira em torno das “cidades do futuro e da sociedade”. E se há algo que o Brasil precisa cultivar é a capacidade de imaginar futuros. Falar de urbanismo, hoje, não é apenas tratar de infraestrutura, mas de convivência, bem-estar, pertencimento. É discutir como o espaço molda relações e como as decisões técnicas podem — e devem — dialogar com as demandas humanas. A presença do ministro Gilmar Mendes, por exemplo, empossado como vice-presidente de honra do Instituto Niemeyer, reforça essa interseção entre o urbano e o jurídico, entre forma e norma, entre chão e instituição.

Mas não se trata de um fórum voltado apenas à elite técnica ou acadêmica. O gesto de tornar o evento gratuito e aberto ao público (ainda que com vagas limitadas) sinaliza o desejo de incluir a sociedade nessa conversa. Uma cidade justa começa por uma cidade que escuta. E o Fórum, com seu espírito de encontro e troca, oferece uma rara oportunidade de pensar a cidade como bem comum, como construção coletiva e não apenas obra finalizada.

É fácil esquecer, diante dos impasses da política ou da pressa cotidiana, que a cidade em que vivemos é também uma narrativa. Cada praça, cada viaduto, cada eixo ou sombra projetada conta uma história sobre quem fomos e quem gostaríamos de ser. E Brasília, com sua monumentalidade quase onírica, ainda provoca a imaginação coletiva. Nela, o urbanismo flerta com a utopia, a engenharia conversa com o direito e a arquitetura tenta, às vezes com sucesso, às vezes com descompasso, desenhar uma ideia de país.

Eventos da magnitude e da relevância do Fórum Mundial Niemeyer talvez não possam solucionar magicamente todos os intrincados dilemas que afligem as cidades contemporâneas — as persistentes desigualdades socioespaciais, os desafios ambientais que clamam por soluções urgentes, as complexas questões de mobilidade e acessibilidade, entre tantos outros. Contudo, sua importância reside precisamente em nos recordar, de maneira contundente, da necessidade inadiável de manter acesa a chama da indagação, de continuar formulando as perguntas essenciais que nos impelem a refletir criticamente sobre o espaço que habitamos e que molda nossas vidas. Como conciliar a imperiosa necessidade de preservar a identidade singular de nossos centros urbanos com as inevitáveis dinâmicas da mudança e da inovação? Como promover um crescimento urbano que seja simultaneamente sustentável e inclusivo sem obliterar as marcas significativas do que já existe, da história inscrita em cada rua e em cada edifício?

Em tempos particularmente suscetíveis à prevalência do pragmatismo e à atração pela tecnocracia como solução universal, a capacidade de formular essas perguntas e de manter vivo o debate sobre os rumos do urbanismo representa, em si mesma, uma demonstração de resistência intelectual, uma afirmação da importância da reflexão crítica e da visão de longo prazo na construção de um futuro urbano mais promissor e equitativo.

Talvez seja esse o legado mais importante de Niemeyer: a recusa em ver o espaço como mera função, e o insistente convite a enxergar beleza, simbolismo e política no desenho das coisas. Brasília ainda carrega essa centelha. Que o Fórum a reacenda — com ideias, não apenas homenagens.

 

A frase que foi pronunciada:
“Um cientista que também é um ser humano não deve descansar enquanto o conhecimento que pode reduzir o sofrimento repousa em uma estante”.
Albert Sabin

Albert Einsten. Foto: Arthur Sasse/Nate D Sanders Auctions/Reprodução

 

História de Brasília
Os pais dos alunos residentes nas casas da Caixa Econômica estão apavorados com a série de desastres ocorridos na W3 e pedem um guarda para ajudar as crianças na travessia daquela avenida. (Publicado em 04/05/1962)

Direito ao sono

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Foto: reprodução da internet

 

O projeto modernista de traços leves e horizontes abertos foi, pouco a pouco, coberto por uma sinfonia dissonante de latidos que não cessam — nem de dia, nem de noite. As casas, muitas delas antes silenciosas e integradas à paisagem verde do Cerrado, converteram-se em pequenas fortalezas sonoras, onde os verdadeiros senhores do território não são os moradores, mas seus cães. Os animais ocupam varandas, quintais, lajes e, com frequência, também a rua, numa espécie de domínio acústico irrestrito.

Não se trata, é evidente, de uma crítica à existência canina. Trata-se de uma crítica à irresponsabilidade. O problema não é o animal, mas o humano por trás da coleira. O cachorro late, uiva, reclama, sofre, pede atenção, denuncia abandono. E o dono, indiferente, silencia. Ou melhor, silencia para si, porque os vizinhos que lutem com o ruído incessante, nas madrugadas interrompidas, nos dias de trabalho invadidos por uma barulheira contínua que mina a paz, a paciência e, em casos extremos, a sanidade. Não tratamos aqui dos simpáticos cães que latem porque passa uma pessoa ou porque o caminhão de lixo atravessa a rua. Falamos dos neuróticos abandonados em casa.

O mais impressionante é que o fenômeno não distingue classe social. Dos bairros populares às regiões nobres — como o Lago Sul e o Lago Norte, autointitulados bastiões do bom viver —, o problema se repete. Cachorros isolados em quintais extensos, latindo por horas, ignorados por famílias inteiras que parecem ter desenvolvido uma forma avançada de audição seletiva. Tal como certos pais que não mais ouvem os gritos dos próprios filhos mimados em restaurantes ou aviões, os donos de cães perderam a sensibilidade auditiva — ou simplesmente deixaram de se importar com o desconforto alheio.

Em muitos casos, o cão, que era apenas um educado animal de guarda ou de fazenda, agora é promovido a filho substituto, herdeiro emocional de adultos solitários ou casais tardios. Em bairros de classe média e alta, esse fenômeno se manifesta com ainda mais intensidade: casas enormes, quintais ociosos e vínculos familiares rarefeitos demandam presença, e os cães — muitos, barulhentos, mimados — preenchem esse vazio com latidos que, se por um lado, quebram o silêncio da solidão; por outro, os impõem aos vizinhos. Trata-se, em última instância, de um sintoma moderno: o animal torna-se companhia afetiva, mas a coletividade paga o preço da ausência de limites, como numa metáfora viva da sociedade que prefere substituir o conflito pela acomodação ruidosa.

Essa normalização do incômodo é um sintoma. Um sintoma de uma cidade que foi sendo ocupada por uma cultura de permissividade egoísta, onde a liberdade de um termina não quando começa a do outro, mas quando o outro se cansa de reclamar. Reclamar, aliás, é inútil. Quem ousa fazê-lo, invariavelmente, recebe de volta um olhar de surpresa e desdém, como se apontar o óbvio — que o cachorro do vizinho está latindo sem parar desde às três da manhã — fosse um ato de agressão. “Mas ele é tão bonzinho…”, dizem, como se a doçura do animal anulasse o dano acústico causado por sua solidão vocalizada. Tão simples contratar alguém para educar o cão. Mas esse é um caso raro.

O problema central, como em tantos outros aspectos da vida pública brasileira, é a ausência de responsabilização. Há leis, há regulamentos, há códigos de postura municipal, todos solenemente ignorados. A fiscalização é rara, a denúncia é burocrática, a punição é improvável. A cidade acostumou-se a conviver com o barulho como se fosse parte do clima, como a seca ou o calor de setembro. E o pior: há quem considere normal. Como tudo que se repete sem freio, o anormal vira hábito.

O sujeito que se incomoda com o latido não pode reclamar: será visto como autoritário, insensível, ou pior, como “antipet friendly”. Já o dono do cão se arroga o direito de ser intocável, ainda que seu animal transforme a madrugada em suplício coletivo. No fundo, trata-se da mesma lógica que permite ao político furar fila no hospital, ao juiz exigir tratamento privilegiado no aeroporto ou ao empresário fechar a rua para a festa do filho: uma convicção enraizada de que o espaço público existe apenas para servir à vontade do indivíduo mais assertivo — ou mais barulhento. O latido, nesse contexto, é apenas o som ambiente de uma cultura em que o privilégio fala alto, e a responsabilidade, quase sempre, cala.

O que se observa, portanto, é um tipo de degradação do convívio urbano que escapa à análise imediata. É uma desorganização moral antes de ser uma desordem prática. Porque o que está em jogo não é apenas o direito ao silêncio, mas a capacidade de reconhecer que viver em sociedade impõe limites — inclusive aos afetos. Amar um animal não justifica submetê-lo ao isolamento nem permite ignorar os efeitos colaterais de sua presença ruidosa. O problema não são os cachorros: é a negligência travestida de afeto, é a falta de empatia travestida de liberdade.

Brasília se transforma não por excesso de cães, mas por escassez de civilidade. A cidade que nasceu para ser vitrine de um país moderno tornou-se, nesse aspecto, a caricatura do que há de mais arcaico: um espaço onde cada um faz o que quer dentro de seu lote, sem prestar contas ao entorno. Como se o muro bastasse para conter o som, a lei, o incômodo. E como sempre, o que falta não é norma — é aplicação. A paz urbana, como a democracia, exige vigilância constante. E, no caso dos cães, talvez um pouco de bom senso e consideração faria um grande efeito. Porque ninguém deveria precisar lutar pelo direito de dormir em silêncio na própria casa.

 

 

A frase que foi pronunciada:
“O maior medo que os cães têm é o medo de que você não volte quando sair de casa sem eles.”
Stanley Coren , psicólogo canino

 

História de Brasília
Afora isto, deve-se procurar saber quem fez o pichamento, porque serão, certamente, pessoas que não desejam a permanência do sr. Sette Câmara na Prefeitura por motivos que ninguém sabe. (Publicada em 4/5/1962)